Os rótulos enganam, avisa Marcos Lisboa em coluna excelente na Folha de S.Paulo. A tese do autor é que os termos usuais das nossas discussões políticas – direita x esquerda, conservador x progressista etc. – são mais flutuantes do que imaginamos. Marcos Lisboa dá exemplos: “liberal”, hoje, pode ser o defensor das liberdades individuais – ou, sob outra perspectiva, o defensor das desigualdades naturais.
Eu próprio já escutei, da boca de um entusiasta da “cultura do cancelamento”, que ele era o verdadeiro liberal. Suprimir certas vozes para promover os que não têm voz é uma forma legítima de libertar quem permanece acorrentado. “No século 17”, avançou ele, “foi preciso calar a voz da Igreja e da monarquia para que a burguesia se emancipasse”. É uma interpretação bizarra do liberalismo moderno, mas tudo bem. Meu ponto é outro: quem acusa os “canceladores” de serem iliberais nem imagina que, aos olhos deles, os iliberais são os outros.
Mas existe um segundo problema com os rótulos que suplanta essas diferenças de perspectiva: eles são internamente incoerentes. Pior: os rótulos funcionam como kits ideológicos que dispensam o sujeito de pensar. Se a pessoa é de esquerda, existe uma lista de assuntos – da política à economia, da moral à educação – que já estão decididos e fechados. Um progressista que seja contrário à eutanásia, por exemplo, é uma contradição nos termos. O mesmo acontece à direita, sobretudo nos Estados Unidos. Um conservador que seja contrário à liberalização das armas é uma aberração ambulante. Ou não?
Rótulos ideológicos são como junk food para quem não sabe pensar. Basta se declarar de um lado, e as posições sobre os mais diversos assuntos já vêm prontas
Talvez não. Essa, pelo menos, é a tese de James Mumford no seu Vexed: Ethics Beyond Political Tribes. A ambição de Mumford é investigar até que ponto as posições habituais da esquerda e da direita são coerentes com os princípios que ambas defendem. Sentença: não são. Porque, se fossem, e ficando apenas nos exemplos citados, os progressistas seriam contra a eutanásia e os conservadores seriam favoráveis a um controle férreo das armas.
Sobre a eutanásia, Mumford relembra que o princípio da “inclusão” é caro à esquerda. Por “inclusão”, entenda-se identificar os marginalizados e proteger os mais vulneráveis. Superficialmente, a eutanásia e o suicídio assistido cumprem esses dois quesitos, libertando os indivíduos do sofrimento terminal. Mas só superficialmente. Ao permitir que um médico mate (eutanásia) ou que um paciente possa ser ajudado a matar-se (suicídio assistido), é possível contra-argumentar que serão os mais vulneráveis, os mais solitários, os mais pobres, sem acesso a cuidados paliativos ou a mero suporte familiar ou comunitário, que olharão para a eutanásia e para o suicídio assistido com outra disponibilidade. O caso agrava-se se a eutanásia exceder os casos terminais e contemplar também quadros depressivos graves, como já acontece na Europa.
E a direita? Basta escutá-la na defesa da “sacralidade da vida humana”. Em matéria de aborto, essa sacralidade começa ab initio, desde a concepção. Pena que a “sacralidade da vida humana” não se estenda a outros domínios. Como relembra James Mumford, os Estados Unidos têm 4% da população mundial e 50% de todas as armas nas mãos de civis. Também têm uma taxa de homicídio que é 20 vezes superior à média dos países da OCDE. Sem falar do resto: 60% das mortes por armas de fogo são por suicídio. E o número de crianças mortas todos os anos por disparos acidentais supera o número de crianças vítimas de câncer. Não seria hora de defender a “sacralidade da vida humana” para lá do período de gestação, limitando severamente o acesso às armas? Ou a vida só é sagrada enquanto não saímos cá para fora?
Nas discussões políticas de hoje, há excesso de discussão e déficit de política. Porque pensar politicamente significa abandonar a junk food ideológica e começar a pensar sobre as coerências e as consequências das nossas convicções mais profundas. Isso não significa que as contradições serão resolvidas – e aqui me distancio de James Mumford, que parece defender uma coerência radical entre os princípios e as ações. Significa, tão só, ter uma noção mínima de que essas contradições existem – e que, por causa disso, o ceticismo e a livre discussão de ideias serão sempre preferíveis ao fanatismo de quem só sabe falar dentro da caixa.
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