Evan Peters em cena de “Dahmer”, série da Netflix.| Foto: Divulgação/Netflix
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Sempre tive uma certa simpatia por psicopatas canibais. Na ficção, não na realidade. A culpa é do doutor Hannibal Lecter, que me introduziu nos prazeres da gastronomia molecular. Fazer o quê? Bom, talvez assistir à série de que tanto se fala, Dahmer, na Netflix. Sentença rápida: recomendo. Sentença mais longa: a polêmica que se instalou não tem sentido. Falo, sobretudo, da fúria dos ativistas LGBTQIA+ que não toleraram ver um personagem gay matando e desmembrando outros gays. Poupem-me: a ideia de que um gay, ou um bi, ou um trans tem de ser um modelo de santidade é de um paternalismo reaça e arrepiante.

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Gostei de Dahmer, a história do serial killer que matou 17 pessoas nos Estados Unidos, porque ela é uma investigação notável sobre o mal. A palavra, bem sei, tem ressonâncias religiosas, ou pelo menos metafísicas, que a nossa sensibilidade pós-moderna não tolera. Só isso explica as tentativas permanentes de arrumar o conceito nas estantes estreitas da nossa compreensão. O mal é fruto da ignorância – o supremo sonho do racionalista. Não, não, o mal é fruto da sociedade e da injustiça que existe nela – o supremo sonho do materialista. Absurdo. O mal é fruto de uma qualquer disfunção cerebral – o supremo sonho do cientista. Tudo errado, novamente. O mal é fruto do abandono de Deus e da sua luz divina – o supremo sonho do crente.

Dahmer mostra que o mal é incompreensível, mas a escolha desse modo de ser não é

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O primeiro mérito de Dahmer está na forma como se vai aproximando de cada uma dessas explicações para as detonar em seguida. Em teoria, Jeffrey Dahmer é uma vítima da ignorância, ou da família, ou de uma cabeça doente, ou até do abandono da fé – a sua conversão final arrisca essa hipótese. Mas quando dissecamos o homem da mesma forma que ele dissecava os animais mortos que recolhia na estrada, descartamos saídas tão fáceis.

Dahmer sabe o que faz; a família era disfuncional, mas não mais disfuncional do que milhares ou milhões de outras; o cérebro não funcionava com aprumo, certo, mas psicopatas parecidos tinham legado a massa cinzenta à ciência sem resultados morfológicos promissores; e a descrença de Jeff como explicação final para a sua malignidade seria um insulto para agnósticos ou ateus, que não andam por aí palitando os dentes com um osso do vizinho. O que resta? Resta o próprio Jeff, uma criação sublime do ator Evan Peters: quando o vemos e ouvimos, na sua lentidão vampiresca, quase sonâmbula, a primeira sensação que experimentamos não é medo. É tédio, um terrível tédio.

O filósofo Terry Eagleton, no seu ensaio Sobre o Mal (recém-lançado no Brasil pela Unesp), já tinha avisado: o mal é tedioso porque não existe vida nele. O mal é destituído de vida interior. Essa é a razão, como se vê em Dahmer, pela qual a intimidade, a verdadeira intimidade, é território interdito para Jeff. O próprio toque físico – do pai, dos “namorados”, de qualquer pessoa dotada de calor humano – é uma ameaça existencial: a verdadeira intimidade revela o que somos. O psicopata não tem nada para revelar, exceto o medonho vazio que o habita. Esse sofrimento só pode ser aliviado quando refazemos o mundo à nossa imagem e semelhança – um ato de criação pela destruição, onde nos sentiremos finalmente em casa. Como escreve Terry Eagleton, em passagem que poderia ser um cartão de visita para Dahmer, o psicopata quer abrir os corpos dos outros para confirmar que também ali há o mesmo vazio que o consome.

O ensaio de Terry Eagleton, na descrição minuciosa do mal, tem um propósito: retirar-lhe a carga de mistério que tradicionalmente associamos à palavra. Seguindo o raciocínio do filósofo, se dotarmos o mal de uma qualquer ininteligibilidade, isso significa, perversamente, que nunca poderemos responsabilizar o psicopata pelos seus atos. Ele é como é e não poderia ser de outra forma. É a sua natureza. Como culpar a natureza?

Entendo a preocupação de Eagleton, mas não vou tão longe: é perfeitamente possível manter que as raízes mais profundas do mal são incompreensíveis e, apesar disso, que a escolha desse modo de ser não é. Basta olhar para a verdadeira figura trágica da série, o pai de Jeff (notabilíssimo Richard Jenkins), que nunca desiste de tentar saber em que atalho da vida o filho se perdeu. Já é um princípio de salvação saber que o atalho existe para qualquer um de nós.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]