Vou dizer isso de forma bastante pausada e simples: se você assistiu ao último show de Dave Chappelle na Netflix e não sentiu o seu coração estremecer, acredite, você está morto. E não vale a pena legar o órgão para a ciência: ninguém quer esse pedaço inútil de músculo, sisudez e raiva.
Venho em paz. Não estou aqui para polemizar – as polêmicas me cansam, acredite, e eu já não tenho idade nem paciência para perder energia com elas. Mas, com todo o respeito pelos editores, vou ter de repetir: se você não sentiu o seu coração estremecer com Dave Chappelle, eu prometo que vou rezar por você.
Ninguém me avisou dessa mudança: o momento em que contar piadas é, por definição, exibir o desprezo rancoroso, a vontade de humilhar, o ódio assassino que sentimos por algo ou alguém
Eu sei, eu sei: o show está sendo criticado por sua suposta “transfobia”, ou seja, pelo fato de Chappelle contar piadas controversas sobre o mundo trans. Vamos começar pelo bê-á-bá, sem perder muito tempo com ele: Chappelle faz piadas sobre tudo – trans, brancos, negros, mulheres, extraterrestres. Até faria sobre portugueses, se fosse brasileiro (ou vice-versa, já agora; você não sabia?).
Mas desde quando contar piadas constitui uma manifestação de ódio? Faço a pergunta com humildade, atenção. É que ninguém me avisou dessa mudança: o momento em que contar piadas é, por definição, exibir o desprezo rancoroso, a vontade de humilhar, o ódio assassino que sentimos por algo ou alguém. Claro que existem piadas que não têm piada; são meras manifestações de boçalidade. Mas se não conseguimos distinguir esses grunhidos cavernícolas do humor propriamente dito, será que o problema está nas piadas ou em nossas cabeças ignaras?
Ri com Dave Chappelle. Rio sempre. Mas, dessa vez, os últimos 15 minutos do show são um prodígio de humanidade que, sem surpresas, as patrulhas foram incapazes de entender – e que só raros críticos foram capazes de elogiar.
Atenção ao spoiler: tudo acontece quando Chappelle partilha a história da sua amiga Daphne Dorman, comediante e mulher trans. Parece que Daphne ria alto das piadas que ele contava sobre “o pessoal do alfabeto”, ou seja, a comunidade LGBTQIA+. Um dia, quando Chappelle estava em San Francisco, convidou Daphne para fazer o número de abertura do seu show. Daphne aceitou, atuou e depois, sentada na primeira fila, assistiu ao artista principal.
Assistiu, vírgula: começou a falar com ele e Chappelle aceitou essa espécie de debate improvisado (e hilariante) sobre os temas trans. No final, o humorista deu-se por vencido e declarou, para riso do público: “Eu não entendo o que você está falando”. Daphne não riu e respondeu: “Eu não preciso que você entenda. Só preciso que você acredite que estou a ter uma experiência humana”.
Dizer que o momento foi epifânico para Chappelle seria um eufemismo. Ele percebeu que não era a tribo que falava, com suas ameaças habituais sempre que alguém não obedece ao dogma oficial. Daphne era um ser humano em toda a sua complexidade – exatamente como os seres humanos são. E exatamente como Dave Chappelle é. “I believe in you, bitch”, respondeu ele. “It takes one to know one” (“Eu acredito em você. É preciso um para conhecer um”).
Nas guerras culturais em curso, existem tribos para todos os gostos. E todas elas cometem o mesmo abuso: a abolição do indivíduo pela imposição de uma identidade coletiva
O destino da amiga foi trágico – acabaria por se suicidar tempos mais tarde, não sem antes ter defendido Chappelle das acusações de “transfobia” que a tribo lançou contra o humorista por causa do show Sticks and Stones, também na Netflix. Dave Chappelle, perante a notícia, decidiu criar um fundo para ajudar a filha pequena de Daphne. Um dia, quem sabe, talvez possa ter uma conversa com ela para lhe dizer a mais bela e brilhante piada da noite: “Minha querida, eu conheci o teu pai”. Pausa, risos da plateia. “Ele era uma mulher encantadora.”
Nas guerras culturais em curso, existem tribos para todos os gostos. E todas elas cometem o mesmo abuso: a abolição do indivíduo pela imposição de uma identidade coletiva, uniforme, essencialista, que determina o que somos, o que dizemos, o que pensamos, como agimos e contra quem. Falar de esquerda ou direita, nesse contexto, é absurdo. Ambas são reflexo uma da outra. Dave Chappelle quebra esses espelhos e relembra que só existe verdadeira empatia quando existe a partilha de uma verdadeira individualidade.
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