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1. Nos 200 anos do nascimento de Fiódor Dostoiévski, tirei da estante os livros do russo que me acompanharam na adolescência. Quais os títulos que estão no pódio?
Eu diria, por ordem decrescente, "Os Irmãos Karamázov", "Os Demônios" e "O Idiota". Mas, para ser honesto, o primeiro que verdadeiramente li –e que verdadeiramente me rachou a cabeça– foi "Memórias do Subsolo".

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Reli-o agora, só para confirmar se o personagem central ainda me assombra como antigamente. Confirmo. Ali está o mais perfeito retrato da mentalidade ressentida que conheço –aquela mistura paradoxal de superioridade e inferioridade que leva o ressentido a ver no mundo e nos outros a repugnância que ele sente por si próprio.

Na adolescência, essas coisas ganham contornos literários, distantes, irreais. Mas, na meia idade, já foi possível experimentar o cardápio completo –em nós e nos outros.
Uma passagem, aliás, revela bem a intemporalidade de Dostoiévski: quando o narrador nos confessa sua hipersensibilidade, o prazer que sente quando o seu amor-próprio é ferido pelo princípio da realidade. Mais: ele procura a ofensa, ele busca a vileza como se o sentimento de humilhação validasse a sua vida sem sentido.
Sorri. Será preciso dizer que essa hipersensibilidade tomou conta do mundo?

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Olho em volta. Tudo que vejo são ressentidos que se comprazem nas suas ofensas, reais ou imaginárias, como se não pudessem viver sem elas. Sem saber, Dostoiévski antecipava o clima moral do século 21.
Mas, antes do 21, há o século 20, claro. Também aqui o homem do subsolo é profético ao contestar a ideia iluminista de que o ser humano só comete ignomínias porque não conhece seus melhores interesses.

A esse otimismo delirante, o homem do subsolo responde com um pensamento simples e brutal: existe na destruição, e até na autodestruição, um prazer que os racionalistas são incapazes de aceitar.

E bastam esses caprichos sanguinários e absurdos para que todos os sistemas humanistas se desfaçam em pó.

2. O mundo se divide em dois tipos de pessoas: as que gostam dos filmes de Wes Anderson e as que não gostam.
As segundas sentem que o diretor não é propriamente um diretor; é um adulto manipulando seus brinquedos em cenários propositadamente artesanais. As histórias, essas, "não têm sentido" –são mera coleção de esquetes, com diálogos que soam em duas escalas musicais distintas.

Os primeiros, entre os quais me incluo, gostariam de visitar aquele mundo, vestindo calças de bombazina (amarelas), blazers de veludo (verde) –e uma fita de jogador de tênis na cabeça. Por mim, andaria de barco com Steve Zissou, não me importaria de jantar na casa dos Tenenbaums e passaria umas férias no Grande Hotel Budapeste.

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Embora, aqui entre nós, o meu sonho fosse mesmo escrever para The French Dispatch, a revista editada em Ennui-sur-Blasé (que nome! Tédio-sobre-Apatia!), e que vai para as bancas, perdão, para os cinemas do Brasil na próxima quinta.
O filme começa com uma triste notícia: a morte do diretor da revista, o lendário Arthur Howitzer, Jr. (Bill Murray, quem mais?). Com a morte, a revista publicará o seu último número (e o obituário de Arthur, naturalmente). Mas, antes de o pano descer, haverá tempo para folhearmos a revista e as suas seções principais.

Tudo começa com as notícias sobre Ennui-sur-Blasé (compiladas por Herbsaint Sazerac, ou seja, um hilariante Owen Wilson). Segue-se um longo ensaio sobre o pintor Moses Rosenthaler (Benicio del Toro), um demente do manicômio local que se tornou uma estrela da arte moderna.
Depois, haverá também tempo para os existencialistas revolucionários da cidade (uma espécie de reprise do Maio de 68 em que as lutas entre os estudantes e o poder político se resolvem jogando xadrez).

E tudo termina com o crítico gastronômico Roebuck Wright (Jeffrey Wright) envolvido num sequestro com comida envenenada. Sim, The French Dispatch mimetiza a estrutura da revista New Yorker, sobretudo quando liderada por Harold Ross e William Shawn.

(Hoje, a revista sucumbiu à sensibilidade "woke" de uma forma tão extrema que teria matado de infarto todos os comensais da mesa redonda do hotel Algonquin).
O tom, esse, é uma homenagem ao trio mais divino que o jornalismo americano foi capaz de produzir: os humoristas Robert Benchley, James Thurber e S.J. Perelman, que pairam sobre cada fotograma com suas histórias surreais e risadas insanas.

Quem disse que a nostalgia, a matéria-prima de Wes Anderson, usava sempre cara séria?

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