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1. As universidades estão fechadas, mas as aulas continuam. À distância: eu de um lado, os alunos do outro. Não me importo. Sonho há vários anos com a possibilidade, agora cada vez mais próxima, de lecionar a partir da cama. É um sonho antigo, que me vem dos tempos de estudante, quando li uma biografia de Isaiah Berlin, meu tema de doutorado. Parece que o nosso Isaiah, hipocondríaco de carteirinha (um abraço, irmão!), fazia as suas tutorias do leito. Não sei se usava pijama e robe, mas eu, quando chegar a hora, não dispensarei os adereços.
Claro que nem tudo é perfeito: com uma mulher médica, labutando dia e noite no hospital, e um filho de 4 anos que não veio com controle remoto, algumas aulas são dadas em estado de pânico. No caso, o pânico compreensível de ter a criança a invadir a tela quando eu estou concentradíssimo a dissertar sobre os caminhos do liberalismo. Que fazer?
Por enquanto, há subornos: se ele não incomodar o senhor professor por duas horas, pode comer os chocolates que entender. A mãe, é claro, não sabe do trato. Espero que a diabete não estrague o nosso segredo.
2. A quarentena tem sobre mim o mesmo efeito que o álcool, ou a memória do álcool, nos sonhos de um alcoólatra. Naquela fase difusa em que ainda não estou bem acordado, posso jurar que sinto o cheiro da terra. Ou da grama recém-cortada. Ou do mar. Sinto o vento, a chuva, o sol sobre a pele. Sinto os ruídos da cidade, o cheiro da comida quente, o rumor dos restaurantes. Escuto as conversas indistintas dos cafés. Escuto... Mariah Carey. Perdão?
Sonho há vários anos com a possibilidade, agora cada vez mais próxima, de lecionar a partir da cama. É um sonho antigo, que me vem dos tempos de estudante
É nesse momento que acordo, ao som de Hero. Há três semanas que assim é: a vizinha de cima, sem outra ocupação audível para a quarentena, recebe as manhãs com karaokê. Mariah Carey é onipresente, mas Céline Dion ou Christina Aguilera também aparecem no palco. Há aqui uma nítida preferência por divas da música pop que fizeram do grito uma carreira. A diferença, apesar de tudo, é que Mariah ou Céline conseguem emitir uma frase melódica sem grandes variações de escala. A minha vizinha começa em dó maior e termina em si bemol no espaço de um único segundo. Ou é talento, ou é uma forma de tortura que a CIA deveria experimentar em Guantánamo.
Não me rendo. Salto da cama, enfio o CD no aparelho e bombardeio o prédio com Isso Aqui Tá Bom Demais, dueto de Dominguinhos e Chico Buarque. Pode ser impressão minha, fruto do delírio, mas juro que já escutei aplausos dos outros moradores.
3. Há boas surpresas nesses tempos de peste. Uma delas foi um reencontro virtual, via Zoom, com colegas de escola que já não se viam havia 30 anos. O pessoal tem de matar o tempo antes que o tempo nos mate.
Havia regras. Cada um deveria vestir terno ou vestido de cerimônia. E aparecer com uma garrafa de champanhe, só para brindar à distância. Cumpri. Todos cumprimos. Na hora marcada, 28 apareceram. Era suposto sermos 30, mas dois já não estão entre nós.
O primeiro brinde foi para eles, os ausentes. O segundo, para os presentes. O terceiro, para o doente (com sintomas de corona; ligeiros). E os restantes para as apresentações: cada um foi contando o que fez com a vida, o que não fez, o que gostaria de ter feito. Regra geral, não há grandes arrependimentos. Nem grandes surpresas: a ideia de que envelhecemos só funciona com estranhos. Para quem se conheceu na adolescência, é incrível como pouco mudamos. Sim, superficialmente, há menos cabelo, mais rugas, um pouco mais de volumetria.
Mas, por baixo da tirania da carne, toda a gente ficou nos 14 anos. No sorriso dos 14, ou na timidez dos 14, ou na vaidade dos 14, ou na melancolia dos 14. Eu, por exemplo, no pessimismo dos 14. Foi o que ela disse, a primeira namorada, que recordou ao auditório o dia em que me conheceu. E em que pensou seriamente no suicídio, depois de uma conversa longa sobre a futilidade de tudo. De tudo, vírgula: exceto do amor, essa “gargalhada momentânea sobre a morte” (dixit). Que frase! Houve aplausos para tanto romantismo. Alguns imitaram o som do vômito (eu sei quem vocês são).
E que disse eu em minha defesa? Nada. Calado, ruborizado, sorridente, ali me vi, aos 14, cara pálida, magro como um fantasma, sonhando com Nápoles e a tuberculose – até encontrar aquele rosto de Verão, a que me agarrei como um náufrago. Saberá ela que, por muito pouco, não me fiz poeta?
Anoiteceu. As garrafas ficaram vazias. E a vida, a nossa vida de aquário, sugou-nos para dentro da água. Ficaram promessas de que o próximo encontro será ao vivo, entre os vivos, quando a peste passar. Embriagados, todos aplaudiram a ideia, com a certeza absoluta, porém pacífica, de que não nos voltaremos a encontrar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos