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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

A pior forma de governo

O presidente dos EUA, Donald Trump, fala durante um comício no Aeroporto Regional de Pittsburgh-Butler em Butler, Pensilvânia, em 31 de outubro de 2020. (Foto: Mandel Ngan/AFP)

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Chegou o dia! Se Donald Trump for derrotado por Joe Biden, a democracia americana estará salva; a democracia brasileira também; e o mundo, cantando e sorrindo, poderá caminhar finalmente para a fraternidade universal. Quem diz o contrário só pode ser “fascista” ou coisa pior (embora, aqui entre nós, seja difícil imaginar pior, certo?).

Não quero estragar as fantasias da arquibancada. Como lembrava Joseph Conrad, todas as eras vivem de ilusões, caso contrário os homens renunciariam à vida terrena cedo demais e a raça humana chegaria ao seu termo. Será possível admitir, sotto voce, que os problemas da democracia são anteriores a Trump e vão continuar depois dele? Será possível sussurrar que Trump é só sintoma, e não causa, de um problema mais sério e mais grave do que o fanfarrão cor de laranja?

A Universidade de Cambridge acaba de revelar um grande estudo sobre o estado da democracia a nível global. Corrijo os termos. O estudo não é bem sobre o estado da democracia; antes sobre o nível de satisfação com a democracia em dezenas de países ao longo das últimas décadas.

Os problemas da democracia são anteriores a Trump e continuarão depois dele

Simplificando, a democracia está doente aos olhos da população. Em meados da década de 1990, a maioria estava contente com “a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”, na imortal frase de Churchill. Fácil entender o porquê. O Muro de Berlim tinha caído. A União Soviética se esfumara. E, na América Latina, a redemocratização era um fato triunfal.

Passaram 25 anos. A maioria está descontente. Existem exceções? Sim. Na Dinamarca, em Luxemburgo, na Suíça. E em certos países asiáticos. Parece regra: quando há instituições políticas transparentes, sindicáveis e baixos níveis de corrupção e de desigualdade, a satisfação é elevada. Quando isso não existe, o que temos é a insatisfação crescente que reina nos EUA – e o clima semissuicidário que asfixia o Brasil, o México ou a Ucrânia.

Sobre o Brasil, falarei daqui a pouco. Comecemos pelos Estados Unidos: os números mostram que a depressão democrática começou em 2005. Depois, foi sempre a piorar com crises financeiras, aventuras militares insanas, desigualdade crescente entre as elites metropolitanas e os “deploráveis”, sem esquecer o inestimável contributo das redes sociais, que tribalizaram a sociedade de forma radical.

O nosso Donald aparece como consequência, e não como causa, de um contrato social que já não funcionava para todos. Como explica Martin Sandbu no seu livro mais recente (The Economics of Belonging), esse contrato, que funcionou no pós-Segunda Guerra, deu sinais de esgotamento nas décadas de 1970 e 1980 com a desindustrialização das economias do Ocidente. Depois, foi canibalizado pela crise financeira de 2007 e 2008, arrasando com as classes médias. Em breve, esse contrato não passará de memória distante com a automatização dos últimos trabalhos manuais que serviam de refúgio para quem não transitou para a nova “economia do conhecimento”.

E a América Latina? E o Brasil? Eis a região e o país que mais afundaram em 25 anos. Como lembra o estudo, a América Latina foi, no século 19, uma grande promessa de democracia liberal e governo representativo. E, nas décadas de 1920, 1950 e 1980, quase chegou lá. Hoje, três em cada quatro latino-americanos mostram um entusiasmo cadavérico pela democracia – e o Brasil serve de garoto-propaganda. As causas são conhecidas: corrupção, crime e desigualdade não fazem bons democratas.

O problema – e essa é a revelação mais arrepiante do estudo – é que o descontentamento profundo com a democracia tem consequências para o futuro da própria democracia. Em meados da década de 1990, o tipo de frustração que os brasileiros hoje sentem pelas suas instituições políticas era então vivido com igual intensidade por países como a Rússia, a Venezuela e a Belarus. Não é preciso relatar a evolução desses países, exceto para dizer que há sentimentos que viram profecias autorrealizáveis.

Ninguém sabe como estarão as democracias ocidentais daqui a 25 anos. E, claro, o Brasil não é comparável à Venezuela. Muito menos os EUA. Mas, se as causas da crise democrática (desigualdade, corrupção, violência, tribalismo etc.) continuarem a ser ignoradas e confundidas com os seus sintomas (lideranças populistas que pipoqueiam por aí), ainda olharemos para Trump, Bolsonaro e tutti quanti como meros aperitivos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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