Ouça este conteúdo
Às vezes penso que as guerras culturais são casos de amnésia seletiva. Alguém acusa: “O Ocidente foi imperialista!” E eu, abismado pelo choque, murmuro apenas: “Claro que foi. Só agora você descobriu isso?” Minha estranheza só seria comparável se alguém tivesse lido o diário de Anne Frank e, trêmulo de horror, declarasse em público: “Parem as máquinas: os nazistas mataram judeus!” A sério, meu filho?
Claro que o Ocidente foi imperialista. Claro que os nazistas mataram judeus. Não conheço nenhuma pessoa com os estudos em dia que não conheça esse longo rol de violências e crimes. Onde está a novidade? Essa pergunta vale para as patrulhas woke que ficam histéricas com o “óbvio ululante”. Mas também para reacionários de todo tipo que negam as sombras da sua própria história com fantasias benevolentes.
Ambos me parecem infantis porque incapazes de conjugar duas ideias contraditórias na cabeça. O Ocidente traficou escravos; mas o Ocidente também aboliu essa barbárie. Os alemães mataram judeus; mas também nos deram Mozart ou Goethe.
O principal preconceito do escritor era contra a sua própria raça
Uma polêmica recente, que corre em Portugal, ilustra o que digo. Será que Os Maias, a obra maior de Eça de Queirós, é um romance racista? A hipótese foi formulada por Vanusa Vera-Cruz Lima, pesquisadora cabo-verdiana na Universidade de Massachusetts-Dartmouth, e as reações que tenho visto são infantis: uns aplaudem a tese sem reservas; outros espumam de raiva contra ela. Quando será que crescemos um bocadinho?
Segundo o jornal Público, parece que a pesquisadora justifica a sua posição com passagens da obra onde “a inferioridade dos africanos” e a “idealização da branquitude” estão presentes. Não nego que estejam. Ninguém que tenha lido Eça pode negar. Mas talvez fosse útil fazer uma distinção entre a voz de Eça nos seus textos de não ficção – e a voz dos seus personagens.
Eça de Queirós era um homem do século 19 – ou, melhor dizendo, um liberal do século 19. Para ele, o colonialismo era simultaneamente uma missão e um fardo do homem europeu “civilizado”. Esse paternalismo, obviamente racista, foi sofrendo mudanças ao longo da vida, embora me pareça sempre desencantado no caso português. Como era possível levar a civilização aos outros quando Portugal era tão pouco civilizado?
Nem mesmo quando os ingleses travaram as pretensões expansionistas de Portugal na África (o famoso “Ultimato Inglês”, que tanto humilhou os patriotas) Eça se comoveu: “Sem as qualidades próprias de dominar”, escreveu ele, “de nada serve ter domínios”.
Na sua ficção, é inevitável que o racismo estrutural do seu tempo apareça na voz do narrador ou nas falas dos personagens. Mas é um racismo suplantado pelo desprezo maior que ele devota aos portugueses. Os exemplos que Vanusa Vera-Cruz Lima apresenta são prova disso. Nos Maias, quando Maria Eduarda é descrita por João da Ega como uma mulher “loira, alta, esplêndida” e “flor de uma civilização superior”, o contraponto dessa superioridade não são as africanas. São “as mulheres miudinhas e morenas” que era possível encontrar em Lisboa. São, no fundo, as portuguesas.
De igual forma, João da Ega pode olhar para os africanos com sobranceria. Mas Ega representa, mais do que qualquer outro personagem de Os Maias, a mediocridade lânguida e a esterilidade mais absoluta. Daquela boca tudo que sai é afetação e blague.
Porque esse é o tema central de Os Maias: a esterilidade absoluta de um país. Portugal nada cria; imita. E, quando imita, faz a mesma figura que os africanos quando imitam os trajes e os acessórios dos colonizadores. Alguém se espanta que, no meio de tanta aridez, a história termine com um incesto?
A associação lusa de professores de português, confrontada com a tese de Vanusa Vera-Cruz Lima, considera importante analisar os preconceitos raciais presentes na obra. Nada contra, até porque esse trabalho já foi feito por vários especialistas queirosianos e merecia maior divulgação. Mas pretender definir Os Maias pelo literalismo de certas palavras ou expressões racistas é passar ao lado do essencial: o principal preconceito de Eça era contra a sua própria raça. Que essa raça defenda agora o escritor contra as investidas heréticas da pesquisadora, eis uma ironia que nem o próprio Eça seria incapaz de inventar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos