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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Liberalismo

O bebê e a água do banho

O cientista político norte-americano Francis Fukuyama, em foto de 2015. (Foto: Felipe Trueba/EFE)

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Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, “Francis Fukuyama” e “o fim da história” é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos inteligentes e a frase fatal: “A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro”. As gargalhadas aumentam de volume. Sou insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?

Não discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os seus competidores – em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita gente querendo emigrar para lá. Pelo contrário: o desejo o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?

Escutando os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade, relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de abandonar o barco? Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: Liberalism and its Discontents. É um dos melhores livros de Fukuyama.

O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome

Comecemos pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos. Mas, antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas. É um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.

Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia – e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo. Para Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado. Esse fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias tradicionais do Ocidente – e, claro, crises financeiras destrutivas que abriram as portas aos populismos do momento.

A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das “políticas de identidade”. Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos. Mas a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca encontrada.

A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal. É assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o liberalismo foi sendo aplicado.

Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa. Entre a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas. Em ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos salva desse manicômio?

Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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