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Sou um preguiçoso desgraçado. Quer exemplos? Os aplausos. Sempre que assisto a um concerto ou a uma peça de teatro, nunca aplaudo realmente. Faço apenas o gesto. Meu raciocínio é preguiçoso: para que bater palmas quando isso é cansativo e redundante? Basta simular. Já há muita gente batendo.
Minha vida é isso: um esforço constante para não fazer esforços. Exceto, é claro, quando está em causa a minha masculinidade.
Anos atrás, li algures que as aeromoças que nos recebem à entrada do avião não estão ali por mera simpatia. O assunto é sério: quando entramos, elas olham para as nossas figuras com atenção clínica. Só para identificarem os passageiros fisicamente pujantes, que podem dar uma ajuda em caso de acidente ou sequestro terrorista. Depois de ler essa informação, meu comportamento mudou na hora da viagem: encho o peito de ar, encolho a barriga, caminho com passos firmes. Até a voz fica mais grossa, acompanhada por um belo sorriso californiano. Só falta dar um grito de Tarzan.
E para que tanta vaidade, meu Deus? Na hora decisiva, o mais provável era atropelar mulheres e crianças para fugir dali.
O eterno drama dos machos é pensarem demasiado com o órgão errado
Poderia dizer, em minha defesa, que a culpa não é minha. Meus instintos apenas cumprem os rigores da seleção sexual: confrontado com uma “oportunidade de reprodução”, o macho adota certos comportamentos para atrair a fêmea, mesmo que esses comportamentos sejam contrários à sua sobrevivência. O caso do pavão, que tanto intrigava Charles Darwin, é o melhor exemplo: o bicho abre a sua cauda para conquistar a donzela; mas, ao fazê-lo, o leque das penas chama a atenção dos predadores.
Por isso abri a boca de espanto com a polêmica que rodeia os 150 anos da publicação de A Descendência do Homem (1871), do referido Darwin. Fato: o cientista sempre deu boas polêmicas. A maior de todas foi afirmar nesse livro o que toda a gente sabe desde que esteja atenta nos almoços de domingo: há macacos na família. Acontece que a polêmica recente é de outra natureza: como acusa o antropólogo Agustín Fuentes na Science, Darwin estabeleceu hierarquias entre raças e sexos que ensombram a sua contribuição científica. Como aceitar que a raça europeia é superior aos povos indígenas da Austrália? E como aceitar que os homens são intelectualmente superiores às mulheres?
A resposta é menos dramática do que os críticos imaginam: não aceitando. Como qualquer cientista, em qualquer época, trabalhando em qualquer área, Darwin era filho do seu tempo. Isso significa que os preconceitos da sociedade vitoriana não ficavam à porta do seu estúdio. Por outro lado, a afirmação de que Darwin, com tais teorias, ofereceu uma justificação para o imperialismo, o colonialismo e o genocídio, como sustenta Agustín Fuentes, coloca sobre os ombros do velho Charles a responsabilidade pelos crimes que os seus sucessores (e deturpadores) cometeram. Existe algum cientista ou filósofo que possa afirmar, hoje, com toda a confiança, que jamais será usado e abusado por gerações futuras?
A alegada superioridade de certas raças ou sexos foi oferecida como hipótese. A evolução da ciência pós-Darwin desacreditou essa hipótese, jogando o conceito de “raça” ou uma eventual diferença de inteligência entre os sexos no local apropriado: o caixote do lixo. Escutando alguns críticos, que se acham tão modernos nos seus julgamentos anacrônicos, uma pessoa pergunta se não terão sido eles a ficar no século 19, imunes ao progresso da ciência. Mesmo quando reconhecem esse progresso.
E, já agora, imunes também ao exemplo do pavão: numa famosa carta a um colega americano, Darwin confessava que as penas do pavão não o deixavam apenas intrigado; também o deixavam enojado. Fácil entender por quê: o eterno drama dos machos é pensarem demasiado com o órgão errado. Na minha próxima viagem de avião, prometo controlar os meus instintos e entrar na lata como devo: pálido, queixoso, derreado, quase a desfalecer. De que vale mostrar a penugem quando eu quero é que me deixem em paz?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos