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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Hannah e Isaiah

Vista da cidade de Jerusalém.
Vista da cidade de Jerusalém. (Foto: Walkerssk/Pixabay)

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Em 1948, depois do nascimento do Estado de Israel, uma discussão bizarra aconteceu na Inglaterra. Será que os judeus da diáspora deveriam continuar espalhados pelo mundo? Ou, tendo Israel, poderiam agora emigrar em massa para um Estado só deles? O romancista Arthur Koestler e o filósofo Isaiah Berlin, dois conhecidos sionistas, debateram o assunto.

O primeiro defendia a emigração coletiva para Israel em tons claramente autoritários. Só havia esse caminho, afirmava Koestler. Isaiah Berlin tinha uma interpretação diferente: antes de Israel, os judeus tinham poucas escolhas nas sociedades gentias – podiam se integrar, recusar essa integração ou ficar no meio termo. Em qualquer dos casos, eram sempre estrangeiros em terra estrangeira. Israel normalizou a condição dos judeus ao introduzir uma nova variante. Sim, haveria judeus que rumariam para Jerusalém (Berlin foi convidado a isso). Mas mesmo para os que optassem não o fazer (Berlin, idem), Israel era igualmente libertador: porque, agora, ficar na Europa ou em qualquer parte do mundo já não era uma fatalidade. Era uma escolha individual.

Muitos liberais nunca entenderam plenamente esse raciocínio. E sempre partiram do pressuposto de que o sionismo de Berlin estava em tensão, quando não em contradição, com o seu liberalismo cosmopolita. Não está, não. Para Berlin, liberdade sempre significou ter o maior número possível de portas abertas, sem ser obrigado a escolher uma delas. Israel, na interpretação de Kostler, fechava todas as portas, exceto uma. Para Berlin, Israel abria pelo menos duas portas – ficar ou partir –, deixando aos indivíduos a escolha final.

Sem Israel, os judeus voltariam a depender da bondade dos anfitriões

Se relembro essa história é porque li, com alguma estranheza, um texto no Wall Street Journal sobre a relação problemática entre Hannah Arendt e Isaiah Berlin. Não vou resumir os termos dessa relação; há um novo livro na praça, intitulado Hannah Arendt and Isaiah Berlin: Freedom, Politics and Humanity, onde Kei Hiruta analisa o assunto (ainda não li, confesso, mas conheci Hiruta anos atrás, em Oxford, e fiquei impressionado com a erudição do jovem pesquisador).

Meu ponto é com o autor da resenha, Norman Lebrecht, para quem a hostilidade entre Berlin e Arendt também passava pela atitude divergente de ambos sobre Israel. Berlin, um defensor do Estado judaico; Arendt, sempre hostil a tal construção, por considerar Israel um anacronismo nacionalista – uma solução do século 19 transplantada para o século 20. Para Lebrecht, isso significa que Arendt valorizava a liberdade individual acima de tudo – e Berlin sucumbia ao apelo da tribo e do nacionalismo. Ficou célebre, aliás, a resposta de Hannah Arendt a Gershom Scholem quando este a acusou de não ter “amor pelo povo judaico”. Arendt replicou que apenas sentia amor pelos amigos, não por idealizações românticas.

Em teoria, faz sentido. Mas, na prática, essa proclamação ganha contornos pedantes quando a “solução final” foi pensada para exterminar um povo inteiro, incluindo os amigos de Arendt e a própria autora. Os nazis não discriminavam na hora das matanças.

Por outro lado, se Arendt era contrária a um Estado judaico, que solução propunha ela para o antissemitismo secular que teve no Terceiro Reich o seu momento mais sinistro? Propunha um “movimento nacional revolucionário genuíno”, capaz de incluir os interesses do povo árabe na Palestina. Essa ambição, para além de vaga (o que seria tal movimento?), era impraticável – as lideranças palestinas recusaram a partilha do território ab initio.

Isaiah Berlin não era um apoiante acrítico de Israel; um dos seus últimos textos, ditado antes da morte em 1997 e publicado alguns dias depois (no jornal Haaretz), continuava a defender a solução dos dois Estados e condenava o fanatismo judeu (que assassinara o premiê Yitzhak Rabin) como nocivo para a paz. Mas Berlin nunca se iludiu com as sereias da abstração. Se o problema judaico se definia por “um excesso de história e um déficit de geografia”, Israel era a resposta a esse problema, libertando todos os judeus pelo alargamento da possibilidade de escolha individual.

No fundo, Berlin intuía que o desaparecimento de Israel voltaria a colocar todos os judeus, e não apenas os israelenses, à mercê da bondade dos anfitriões. E quem, conhecendo história, confia na permanência dessa bondade? É uma pergunta que não envelheceu uma ruga.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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