Retrato de Anton Tchekhov.| Foto: obra de Osip Braz (1872-1936).
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Nossas livrarias são boas a vender sucesso e felicidade. Puro desperdício de tempo e dinheiro. Uma educação para lidar com o fracasso e a infelicidade talvez fosse mais recomendável, atendendo ao destino natural da espécie.

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Nessa livraria, Anton Tchékhov teria um lugar de destaque. E, entre as obras do russo, "Tio Vânia" estaria na mesa principal. Haverá maior peça sobre o fim das ilusões e, ao mesmo tempo, sobre a imperiosa necessidade de continuar?

Não conheço. Acreditar que sim, mesmo sabendo que não, pode ser uma frase de Beckett, seu discípulo, mas o espírito está em Tchékhov.
Em "Tio Vânia", não é apenas o personagem principal que carrega o peso das suas ilusões perdidas. São todos os personagens, cada um à sua maneira, como náufragos do destino.

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Mas Tchékhov não faz parte da sensibilidade atual, que transformou o vitimismo em moeda corrente.

Uma educação para lidar com o fracasso e a infelicidade talvez fosse mais recomendável, atendendo ao destino natural da espécie

As ilusões não são culpa dos outros. São culpa nossa, que por fraqueza ou medo ou ignorância nos deixamos aprisionar por elas. Reconhecer isso já é, de certa forma, um princípio de salvação.

Eis o programa de "Drive My Car", o soberbo filme de Ryûsuke Hamaguchi que estreia no Brasil nesta quinta-feira. Apesar de se inspirar num conto (excelente) de Haruki Murakami, é com Tchékhov que o filme mais intensamente dialoga.

Primeiro, porque as palavras de "Tio Vânia", ao contrário do que sucedia no conto, pairam sobre todo o filme, iluminando os atos e os silêncios dos personagens em momentos capitais da narrativa. Será que Hamaguchi se inspirou aqui no derradeiro filme de Louis Malle, "Tio Vanya em Nova York", para esse ambíguo efeito? Parece.

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Mas também porque é possível reconhecer nos personagens de "Drive My Car" emanações contemporâneas dos fantasmas de Tchékhov.
O tio Vânia da história é Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um ator versado nas peças do russo, e que regressa a ele depois da morte súbita da mulher, Oto (Reika Kirishima).

Para melhor decorar as falas de Vânia, Yûsuke gosta de dirigir a sua Saab vermelha pelas estradas do Japão, escutando a voz de Oto lendo as restantes falas da peça. Como se, respondendo a elas, pudesse ainda continuar o diálogo interrompido com a mulher.

Mas esse romantismo, se merece o nome, transporta uma sombra de mágoa, ou de ilusão: Yûsuke sabe que Oto lhe era infiel. O fato de nunca a ter confrontado com a verdade se explicava com o medo de a perder.
Até perdê-la realmente, deixando em suspenso todas as conversas necessárias.

Yûsuke vive no limbo da saudade e da revolta. Até conhecer Misaki (Tôko Miura), uma motorista contratada pela companhia de teatro para dirigir a Saab vermelha de Yûsuke.

De início, o ator resiste. Mas o seguro de trabalho a isso obriga e, além do mais, Yûsuke também tem um problema de visão que o impede de ver com clareza todo o tráfego –o que existe na estrada e, claro, o que existe no seu próprio luto.

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Se Yûsuke é Vânia, Misaki lembra a Sonya da peça, outra alma desencantada, com uma história de sobrevivência para contar.

E, tal como Sonya, Misaki representa ainda a esperança que resta depois de todas as revelações dolorosas. Porque é preciso continuar a viver, apesar de tudo –como diria Sonya a Vânia, e como afirma Misaki a Yûsuke numa das mais belas sequências do filme, quando ambos contemplam destroços (no sentido físico e metafísico da palavra).

Era Leonid Heifetz, um dos grandes encenadores de Tchékhov, quem dizia que as peças do russo eram sempre sobre o mesmo tema: o amor. O amor que temos, o amor que nos falta e o amor que reencontramos, nem que seja sob a forma de perdão.

Não o perdão aos outros, porque isso implica um conhecimento impossível sobre o que existe nos seus corações. Mas o perdão que devemos a nós próprios, algo que só é possível quando olhamos para o nosso coração e fazemos as pazes com aquilo que encontramos.
Que essa verdade seja dita no filme (e no conto) por um ex-amante de Oto a Yûsuke é a prova final de que, nesta vida, talvez os anjos apareçam mesmo disfarçados.