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O mais famoso epidemiologista da Suécia, responsável científico pela estratégia anticoronavírus no país, deu uma entrevista ao The Daily Show para dizer, entre outras coisas, que estava "espantado" com o número de mortos.
Esse espanto, nas palavras do doutor Anders Tegnell, explica-se pela mortandade nas casas de repouso para idosos. O que permite concluir que, se não fossem os velhos, tudo estaria dentro do razoável, o que quer que seja esse razoável.
A tese do doutor Tegnell está parcialmente certa, ou parcialmente errada, consoante a perspectiva. Está certa porque a mortalidade da população idosa em casas de repouso é a maior catástrofe global da pandemia.
Mas o famoso cientista está errado ao pôr sobre os velhos o ônus da culpa pelos erros do seu plano.
Relembro: a Suécia, ao contrário dos vizinhos nórdicos (ou europeus), optou por um "lockdown" ligeiro e confiou na disciplina dos seus cidadãos para cumprir o distanciamento social. Mas a vida rolou, mais ou menos como habitualmente. Resultado?
No momento em que escrevo, o país tem 3.225 mortes para uma população de 10 milhões. É pouco? Não é. Nos rankings da mortalidade relativa, e tomando como referência o número de mortos por milhão de habitantes, a Suécia está nos primeiros lugares. Sim, à frente dos Estados Unidos ou do Brasil.
Aliás, se a Suécia tivesse a população do Brasil, já teria ultrapassado os 60 mil mortos, transformando o país no pior exemplo mundial.
Esses números são importantes por dois motivos.
Primeiro, porque a estratégia brasileira nessa pandemia me parece ainda mais radical do que a duvidosa estratégia sueca. Com uma diferença: os hospitais brasileiros não são os hospitais suecos. Quando falei em 60 mil mortos, eu estava sendo otimista, imaginando um Brasil sueco.
Mas existe um segundo motivo que me parece mais relevante. O número de mortos na Suécia se explica pela estratégia mais liberal que o governo seguiu.
E essa estratégia, suspeita minha, só foi possível num país majoritariamente não religioso, onde considerações arcaicas como "a sacralidade da vida humana" não têm o mesmo peso comunitário.
No Brasil, e sobretudo num presidente que põe Deus acima de todos, o descaso de Jair Bolsonaro perante a morte ("e daí?", "não sou coveiro", "não faço milagres" etc.) soa estranha vinda de um autoproclamado crente.
Cada morte deveria ser comentada com respeito. Exceto se adotarmos a velha máxima stalinista de que a morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de milhares é uma estatística.
Sem falar do óbvio: para um autoproclamado conservador, a imprudência que o governo brasileiro exibe perante a pandemia é típica de revolucionários. Porque só revolucionários estão dispostos a sacrificar a vida humana, por ação ou omissão, em nome de um bem maior.
Não se fazem omeletes sem quebrar alguns ovos, como dizia o antecessor de Stálin. No fundo, é isso que separa um conservador de um revolucionário: o primeiro não está disposto a sacrificar a geração presente em troca de um fim abstrato.
Edmund Burke (1730-1797), o pai espiritual da tribo conservadora, explicou o essencial há mais de 200 anos: o primeiro crime da Revolução Francesa não era político; era moral. E por quê?
Porque os revolucionários jogavam o sangue dos outros, reduzindo a política a uma mera aposta de cassino. Como afirmava Burke, não é possível aplaudir "um bem especulativo" que só será obtido através de "uma elevada dose de mal prático".
É desse imperativo que emergem todos os princípios conservadores relevantes: a prudência, a humildade, o realismo, a atitude cética perante a política (e os políticos), a recusa do radicalismo –e um certo horror a "sofistas, economistas e calculadores".
Fato: ninguém de bom senso defende que as considerações econômicas não são importantes no meio dessa tragédia. Isso seria uma forma de radicalismo bastante semelhante ao radicalismo dos que defendem a abertura completa da vida social e econômica.
Mas sociedades civilizadas procuram compromissos civilizados, preservando ao máximo a vida humana. Repito: não se joga no cassino o sangue dos outros.
A Suécia jogou e continua jogando, mesmo com todas as dúvidas sobre o vírus.
Haverá imunidade? Por quanto tempo?
Haverá consequências para a saúde dos sobreviventes? Quais?
Há casos significativos de reinfecção? Quão graves?
E, pergunta crucial, quantos têm de morrer no grande altar da "imunidade de grupo"? Aliás, será legítimo perseguir esse fim sem vacinação massiva?
Qualquer político que não enfrente essas perguntas é pior que um coveiro; é um carrasco.