De vez em quando, me confronto com algo de que não gosto. Um texto, uma imagem, uma piada sem piada. E a parte reptiliana do meu cérebro, que tento controlar com doses maciças de civilização e farmacologia, resolve emitir seus grunhidos cavernícolas. “Cancela, censura, destrói, Little Couto!” Por segundos, ou milésimos de segundo, estou de volta à selva, usando uma tanguinha de pele de urso, com um gigantesco pedregulho na mão. Só então acordo e me forço a repetir o mantra – “são só palavras ou imagens, não são trovões ou animais ferinos, Little Couto” – e volto a vestir minhas calças e meu paletó.
Não é fácil. A biologia conspira contra nós. E a cultura também: no início, era o verbo. A palavra cria mundos – e, pela mesma ordem de ideias, os destrói. O exato Deus que deu conta do recado em seis dias foi o mesmo que puniu os blasfemos em questão de minutos. As palavras, as palavras, cuidado com as palavras! Mas cuidado por quê? Essa é a pergunta que Eric Berkowitz faz no seu importante Dangerous Ideas: A Brief History of Censorship in the West, from the Ancients to Fake News, ou “Ideias perigosas: uma breve história da censura no Ocidente, dos antigos às fake news”.
Você quer censurar textos, imagens, piadas de que não gosta? Seus antepassados fizeram o mesmo. É quase irresistível
O cavalheiro em questão não é maluco. Ele sabe que existem liberdades e liberdades. Exortações ao genocídio ou à chacina não são a sua praia (nem a minha). A lei deve existir para esses casos. Mas o primeiro mérito do livro está em mostrar, para ficarmos ainda em simbologia bíblica, que não existe nada de novo debaixo do sol. Você quer censurar textos, imagens, piadas de que não gosta? Seus antepassados fizeram o mesmo. É quase irresistível – e até as vítimas da perseguição, quando alçadas a posições de poder, rapidamente imitaram os algozes. Os cristãos foram perseguidos pelos romanos. Os judeus foram perseguidos pelos cristãos. Os protestantes foram perseguidos pelos católicos (e vice-versa). E os revolucionários franceses, depois de proclamarem a liberdade de expressão como um dos direitos inalienáveis do homem, começaram a erguer suas guilhotinas para liquidar inimigos – e fogueiras imensas para destruir a arte pré-revolucionária. Jacques-Louis David, seguramente um dos maiores pintores do século 18 francês, foi um zelota entusiasta.
Vivemos sempre em eterno retorno. Não apenas nesses comportamentos selvagens, mas até nas explicações para esses comportamentos. Você quer apagar certas palavras ou expressões para não ofender “grupos” ou “minorias”, certo? Também não há novidade aqui, meu amor. Sua atitude paternalista é a mesma. A grande diferença é que no século 18, quando se proibiam certos romances de cordel, a ideia era proteger as donzelas e suas pobres cabeças vulneráveis.
A histeria com a pornografia, por exemplo, é um dos melhores momentos do livro. Se você fosse um cavalheiro vitoriano, com conta bancária confortável, tudo bem. Mas à medida que você descia na escala social, tudo mal: as massas eram demasiado primitivas para entender certas coisas; nenhuma sacanagem para elas. Isso gerava fenômenos comerciais interessantes, até com grandes autores: A Sonata Kreutzer, de Lev Tolstói, estava proibida na Rússia em edições populares. Mas, quando a edição era de luxo, não havia proibição alguma. O preço nobilitava o comprador.
Aliás, por falar em Rússia, não era apenas o dinheiro que dividia as águas; o intelecto também. Quando surgiu no país uma edição de O Capital, de Karl Marx, os censores oficiais do czar encolheram os ombros e aprovaram a circulação do livro. Ninguém iria entender nada daquilo, não é verdade?
As novas censuras são tão patéticas quanto as velhas – e não funcionam
As novas censuras são tão patéticas quanto as velhas. E, além disso, não funcionam. Essa, talvez, é a lição principal do livro de Berkowitz: as ideias sempre encontram uma forma de escapar ao chicote dos censores. Escapar, vírgula: tornaram-se ainda mais poderosas e insidiosas precisamente porque censuradas. Karl Popper, usualmente um sábio, estava redondamente enganado: não há nenhum “paradoxo da tolerância”. A República de Weimar foi tremendamente intolerante com as ideias nazistas – e vários dos seus praticantes foram presos. O demencial Adolfo foi um deles. Não podemos dizer que essa “cultura de cancelamento” tenha dado bons frutos.
Da próxima vez que você sentir um desejo inconfessável de censurar o que não aprova, respire fundo, dispa sua tanguinha e lembre Talleyrand: nunca sigas o teu primeiro impulso porque ele será sempre generoso.
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