Não é todos os dias que vemos a extrema esquerda e a extrema direita unidas pela mesma causa. Aconteceu. Vladimir Putin faz as delícias de comunistas e fascistas – e a invasão da Ucrânia sentou-os à mesma mesa. Bizarro? Não é. Os extremos partilham a mesma doença: a nostalgia. Para a esquerda, a soviética. Para a direita, a czarista.
Em doses individuais, a nostalgia produz bons romances, bons poemas, ótimos fados. Em política, é uma receita para o desastre. Mas o que terá provocado essa febre na cabeça de Vladimir Putin?
Os extremistas não têm dúvidas: a culpa é dos Estados Unidos, da União Europeia e da expansão da Otan para leste. Se os três tivessem ficado por Berlim, sem jamais avançarem um milímetro, o nosso Vladimir estaria sossegadamente em Moscou, tocando balalaica e bebendo vodca.
Podemos discutir se, após a queda do Muro de Berlim e da desagregação da União Soviética, não terão sido criadas falsas expectativas de que a Otan jamais abarcaria as ex-repúblicas soviéticas. Voltarei a esse assunto em próximas colunas. Coisa diferente, porém, é negar o direito à autodeterminação de países livres, independentes e soberanos.
Os extremos partilham a mesma doença: a nostalgia. Para a esquerda, a soviética. Para a direita, a czarista
A febre nostálgica não se explica com mudanças geopolíticas, mas sim com ideias. As que Putin meteu na cabeça e que o levaram até aqui.
Compreender essas ideias é a tarefa que Michel Eltchaninoff, editor da revista Philosophie, traz em "Inside the Mind of Vladimir Putin". Desconhecia o autor, mas um artigo dele para o Guardian me fez correr atrás do livro.
Apesar do título bombástico (ah, as editoras...), é um trabalho sério de arqueologia intelectual que mostra como se deu a "virada conservadora" de Putin na segunda década do século 21 ("virada reacionária" talvez fosse mais rigoroso).
Estruturalmente, e apesar de ter servido à KGB, Putin nunca foi comunista (nem marxista-leninista). Mas a União Soviética legou ao jovem Vladimir uma escola de virtudes e algumas certezas trágicas. Entre as virtudes, o patriotismo. Entre as tragédias, a dispersão do povo russo por novas repúblicas depois do colapso.
Quando chegou ao poder, na virada do milênio, Putin tentou um compromisso entre os passados recente e remoto. Até simbolicamente: o hino da Federação Russa teria a melodia da URSS, mas as palavras seriam reescritas pelo mesmo autor que escrevera o hino soviético –Sergey Mikhalkov.
Para Michel Eltchaninoff, o compromisso será abandonado no segundo mandato (a partir de 2004) – e enterrado no terceiro (a partir de 2012).
Cada vez mais influenciado pela direita tradicionalista russa da pré-revolução, três autores ressaltam Eltchaninoff: Ivan Ilyin, Konstantin Leontiev e Nikolay Danilevsky.
Não cabe aqui uma análise detalhada de cada um deles. Em resumo, Putin achou nesse mundo perdido o arsenal ideológico para defender a ideia de uma "Nova Rússia": uma civilização purgada da decadência e do niilismo das democracias ocidentais, solidamente religiosa, e capaz de congregar povos eslavos sob uma mesma batuta. Isso implica recuperar os territórios perdidos após 1991.
Como Ivan Ilyin alertara, ele que sempre foi antibolchevique (Franco e Salazar eram suas referências após um breve flerte com Hitler), o fim do regime comunista seria aproveitado pelo Ocidente para abocanhar a Ucrânia, os Estados bálticos, o Cáucaso inteiro.
Seria o desmembramento dessa realidade histórica, cultural e espiritual da Grande Rússia, o último baluarte da civilização cristã. Somente um líder iluminado – um "Guia", um "ditador democrático", nas palavras de Ilyin – seria capaz de preservar a alma da russianidade.
Escusado será dizer que Putin se vê como esse guia – e a invasão da Ucrânia, como uma guerra justa (e sagrada).
Hoje, somos todos "marxistas"; porque todos acreditamos que a economia é a explicação última do mundo. Antes fosse – a economia, pelo menos, assenta num pressuposto de racionalidade.
Infelizmente para a Ucrânia, Belarus, Geórgia e, talvez, Moldávia e os Estados bálticos, as ideias que animam Putin não podem ser vencidas pela diplomacia ou pelas sanções.
Parafraseando um sábio, nada é mais poderoso do que uma ideia perigosa que chegou no tempo errado.
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