“As muito feias que me perdoem”, escreveu Vinicius de Moraes, “mas a beleza é fundamental”. Anos atrás, esses versos eram pacíficos, embora cruéis. Hoje? Revelam um “preconceito” que, além de cruel, talvez mereça uma correção. Que o mesmo é dizer: uma mudança de conduta e, quem sabe, uma proteção legal.
Porque o preconceito tem nome: lookism. Desconhecia o termo, confesso, mas David Brooks explicou tudo no jornal The New York Times. Segundo o colunista, lookism significa valorizar em excesso os belos e, sobretudo, discriminar contra os feios. Não apenas em matéria sentimental; em todas as áreas da vida, do ensino à carreira profissional, sem esquecer as sentenças da Justiça.
São vários os estudos que apontam para a mesma conclusão: os mais belos são sempre beneficiados nas notas escolares, nas promoções, nos salários, até nas penas de prisão. Os feios, pelo contrário, são injustamente punidos por suas feições. Moral da história? É preciso mudar de atitude, aconselha Brooks, e tratar do preconceito contra os feios como mais um preconceito intolerável. Apesar de tudo, o colunista não recomenda cotas para feios. Faz bem. Até porque é difícil imaginar como seriam essas cotas.
Ofender os feios é grosseria; ter uma inclinação natural pelos belos não é
Para começar, seria necessário estabelecer o que se entende por feiura humana e, depois, seria preciso aplicar esse critério a eventuais candidatos que se reconhecessem como feios. Tarefa espinhosa. Será que a inteligência artificial poderia dar uma ajuda? Imagino o cenário: o candidato apresenta-se para uma entrevista de emprego, a máquina analisa as suas feições e a empresa informa que, segundo a escala de Quasimodo, ele atinge 68% de hediondez. É, portanto, elegível para a cota respectiva. O candidato, feliz por ter sido declarado horrendo (“Eu sempre soube que esse rosto me levaria longe!”), agradece e aceita o trabalho.
Enquanto esse futuro não chega, mudar de atitude seria um bom começo. Mas também aqui o meu ceticismo impera: Brooks confunde boas maneiras (com os feios) e naturais inclinações (pelos belos), como se fossem a mesma coisa. Não são. Ofender ou prejudicar alguém porque é feio constitui uma grosseria abominável; nenhuma sociedade civilizada sobrevive se deixar o superego sem freio. Coisa distinta é ter uma inclinação natural por aquilo que é belo, mesmo sabendo que a palavra “natural” não se ajusta às modas do tempo. Se tudo que existe é uma construção social, então a beleza dependerá sempre dos critérios reinantes em particulares sociedades – e, mais especificamente, das relações de poder que se estabelecem entre os seus membros.
Longe de mim contestar o relativismo de certos gostos. Anos atrás, em almoço de família, lembro-me de chocar os presentes com a afirmação vigorosa de que Wallis Simpson era um tesão de mulher. O rei Edward VIII fez muitíssimo bem em trocar o trono por ela.
Mas eu falo de beleza, não de gosto (ou desejo). Eu falo do que é objetivo, não subjetivo. E a beleza, como ensinava Kant, é aquilo que agrada imediatamente, sem precisar de nenhum conceito. Sim, eu sei: a estética procurou encontrar as razões desse fenômeno –na forma, na simetria, na proporção; ou em certas propriedades inatas que respondem aos estímulos de uma determinada maneira.
Mas a beleza será sempre uma evidência e um mistério que se impõe e nos desarma, independentemente das suas causas mais profundas. Até um bebê sabe disso quando contempla um rosto belo e um rosto medonho. Ou quando prova algo doce e algo amargo. Negar essa dimensão da nossa natureza, por razões de justiça social, não me parece apenas quimérico; parece-me abusivo e de um paternalismo arrepiante. Como se os feios precisassem de uma mentira piedosa para se sentirem menos feios, ou até subitamente belos.
Um dia, o cantor Serge Gainsbourg, que era feio como a morte e que namorou as mais belas mulheres da França, disse preferir a feiura à beleza; a feiura, acrescentou Gainsbourg, dura mais tempo. Ironicamente, Gainsbourg tocou no essencial: somos vulneráveis à beleza porque sabemos, inconscientemente que seja, que ela é efêmera. E não há nenhuma engenharia social capaz de remover essa sombra de mortalidade.
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