A cabeça está em crise, dizem os jornais. Com o corona à solta e o pessoal em quarentena, há sinais de loucura aqui e ali. Leio, por exemplo, que os homens da classe média ou média alta são os mais afetados. Um deles confessa: não é fácil continuar trabalhando (em casa), cuidar dos filhos (em casa) e manter a relação conjugal nos mínimos olímpicos (em casa). Pois é. Parece que a pandemia terá como principal mérito mostrar aos homens – o sexo forte, certo? – como é a vida normal das mulheres, obrigadas a fazer tudo isso sem reclamar.
Pessoalmente, relatos desse tipo provocam-me uma certa náusea. O problema é ter lido história, sobretudo as cartas que os rapazes escreviam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914–1918) com as balas do inimigo voando sobre a cabeça. O homem do século 21 entra em colapso porque tem de responder a e-mails e mudar as fraldas dos filhos. É impossível não verter uma lágrima pelos infelizes.
Mas o problema não é apenas pessoal. É civilizacional. O sociólogo Frank Furedi, que tem escrito na virtual Spiked os melhores textos sobre a pandemia em curso, há vários anos que se debruça sobre a forma como a cultura do medo passou a dominar os espíritos ocidentais. Em How Fear Works: Culture of Fear in the 21st Century, um trabalho de 2018 que merece ser lido para entendermos melhor a desgraça humana em que nos tornamos, Furedi não se ocupa apenas dos grandes medos – guerras, pandemias, terrorismos etc. Essa cultura de temor e tremor começa nas pequenas coisas: na dieta (tudo é cancerígeno), nos estilos de vida (não fazer jogging é fatal), na educação das crianças (há pedófilos em todas as esquinas), na relação entre os sexos (todos os homens são predadores).
O homem do século 21 entra em colapso porque tem de responder a e-mails e mudar as fraldas dos filhos
Por outras palavras: nos últimos 40 anos, o Ocidente foi alargando cada vez mais os objetos que nos provocam pavor. Até chegarmos, sem surpresas, a alunos universitários que temem certas matérias “desconfortáveis”, exigem “safe spaces” e batalham contra “microagressões”.
Os nossos antepassados temiam os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – a guerra, a peste, a fome e a morte. Hoje, existem milhares de cavaleiros do apocalipse, sempre prontos para nos atacarem.
Isso tem um preço, avisa Frank Furedi: uma mudança no próprio estatuto de pessoa. Deixamos de ser agentes de resiliência, prontos a enfrentar os desafios como parte da experiência humana, e nos perspetivamos como seres desprotegidos, em risco, emocionalmente frágeis – vítimas eternas de um mundo que conspira para nos destruir.
Se a cultura do medo fosse apenas um problema psicológico, isso já seria lamentável. Mas o que começa por ser um problema psicológico acaba por se metastizar em problema político crucial: quem acredita viver no estado da natureza, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” (Thomas Hobbes dixit), anseia sempre por um novo Leviatã. E não faltam tiranos, ou candidatos a tiranos, dispostos a embalar o nosso medo com doses cada vez mais crescentes de segurança e vigilância.
Na Hungria, por exemplo, o governo de Viktor Orbán prepara-se para aprovar um “estado de emergência” na luta contra o vírus por prazo ilimitado – uma aberração constitucional e antidemocrática. Não será caso único: o patrimônio moral que permitiu a emergência do liberalismo político – autonomia, liberdade, antiautoritarismo, limitação do poder – já estava em erosão. A crise do novo coronavírus pode ser apenas o golpe de misericórdia que faltava.
E quem lutará contra isso? O homem aterrorizado do século 21? Não me matem de riso. Se, por hipótese fantasiosa, alguém dissesse que tinha a cura milagrosa para a Covid-19, exigindo apenas em troca algumas liberdades “menores” (como a liberdade de expressão ou de associação), não faltariam candidatos para o negócio.
Deixamos de ser agentes de resiliência, prontos a enfrentar os desafios como parte da experiência humana, e nos perspetivamos como seres desprotegidos
Sim, a pandemia é séria. E, na ausência de uma vacina, o distanciamento social é a única solução empiricamente comprovada para evitar o colapso dos sistemas de saúde. E as mortes, é claro.
De igual forma, “estados de emergência” podem ser necessários para evitar males maiores. As democracias liberais, às vezes, são obrigadas a esses regimes de exceção, desde que limitados no tempo e enquadrados pela lei. Mas o trabalho de Frank Furedi é precioso ao mostrar-nos como o medo de agora foi alimentado durante anos pelo culto sadomasoquista da nossa própria fraqueza.
Alguém se espanta que, na hora da verdade, o homem do século 21 entre em depressão porque tem simplesmente de ficar em casa?
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS