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O anjo Gabriel
| Foto: Martin Bureau/AFP

Paris é uma festa, já dizia o velho Hemingway. Concordo. Uma pessoa flana pela cidade e acompanha, com espanto, o caso Gabriel Matzneff em todos os jornais. Pois é, uma das vantagens de caminharmos para a meia-idade é conhecermos certos dinossauros que habitam o pedaço. Matzneff, 87 anos, é um deles: nome cimeiro das letras gaulesas, os seus diários são aquilo a que, na linguagem burocrática dos suplementos culturais, podemos designar por “literatura problemática”.

Que são literatura, não o nego: Matzneff é um bom escritor. Mas, entre os temas da sua arte, estão meninos e meninas adolescentes (e pré-adolescentes) que o autor afirma ter seduzido em série. Pois bem: uma delas, hoje com 47 anos, é Vanessa Springora. Escritora e editora, madame Springora publicou um livro, Le Consentement (“O consentimento”), em que descreve a sua relação com Matzneff. Ela, com 14; ele, já na casa dos 50. Foi amor à primeira vista, que rapidamente evoluiu para abuso à segunda, sobretudo quando a jovem Springora percebeu que não era a única.

Os gostos íntimos de Matzneff já eram públicos e notórios. E a república que agora o repudia é a mesma que o aplaudia sem reservas

A Justiça francesa investiga agora. E Gabriel Matzneff, que passou a vida a vangloriar-se da sua pedofilia, virou persona non grata. Aos olhos da Justiça, o que é normal, mas também para a república das letras, o que não é normal: os gostos íntimos de Matzneff eram públicos e notórios. E a república que agora o repudia é a mesma que o aplaudia sem reservas.

Não mais. Literatos vários afastaram-se publicamente do monstro. Colunas de Matzneff na imprensa foram canceladas. E a Gallimard, sua editora há décadas, resolveu remover os seus livros das lojas. Se a guilhotina ainda estivesse a funcionar, o que seria do escritor?

Ponto prévio: relações sexuais com menores, antes de serem uma ilegalidade (óbvio), são sobretudo uma imoralidade (ainda mais óbvio). Sobre isso, nenhuma dúvida. Mas aquilo que me espanta é só agora haver dúvidas entre os mesmos que sempre toleraram qualquer transgressão em nome da contracultura.

Em todos os artigos que li sobre o assunto, o Maio de 1968 é chamado ao banco dos réus. Com razão: se, como se dizia na altura, era proibido proibir, a rebelião não se limitou a contestar o regime “fascista” do general De Gaulle ou o capitalismo reinante no Ocidente. Era preciso derrubar todos os ídolos da burguesia decadente: a família, a autoridade, a moral (judaico-cristã, claro) e, nesse caudal demente, a ideia reacionária de que as crianças e os adolescentes não têm direito ao prazer sexual, de preferência com adultos. No fundo, os soixante-huitards faziam a apologia de um neopaganismo vibrante, finalmente liberto das trevas religiosas, e onde a imaginação e o desejo pudessem tomar o poder.

Foi uma herança que deu frutos: em 1977, relembra o Nouvel Observateur, a nata intelectual francesa defendia em escritos públicos a despenalização das relações sexuais entre adultos e menores. De Sartre a Beauvoir, de Barthes a Deleuze, de Duras a Derrida, ninguém faltou ao chamamento.

Por outras palavras: a indignação súbita com a pedofilia do sr. Matzneff é de uma hipocrisia absurda.

Em 1977, a nata intelectual francesa defendia em escritos públicos a despenalização das relações sexuais entre adultos e menores

Pior: no meio da polêmica, as televisões passam clipes de programas culturais relevantes (o Apostrophes, por exemplo), em que Matznoff deslumbrava os seus pares com as suas meditações sobre a sedução de menores. Todos riam, todos aplaudiam. Outros tempos? Precisamente. E é também por isso que sou contra a remoção dos seus livros, por mais problemáticos que sejam.

Primeiro, porque a minha tolerância com qualquer obra de arte problemática é (quase) ilimitada: dos quadros de Balthus a Lolita, de Nabokov, sem esquecer a prosa antissemita de Céline ou os diários do próprio Matzneff. Exigir que a arte exiba um atestado de bom comportamento moral é não entender nada sobre a autonomia da arte (ou da moral). Ao contrário do que afirmava o hilariante ex-secretário da Cultura, grandes obras nascem de pérfidos temas (e de pérfidos autores).

Se, por absurdo, proibíssemos todas as obras de arte que não obedecem aos bons costumes, isso seria uma repetição do vandalismo que os regimes totalitários praticaram sobre os seus autores malditos. Quem não gosta de certa obra tem uma solução em sociedades livres: não consome. Mas a censura a Matzneff é duplamente errada porque destrói o testemunho de um tempo e de uma sensibilidade. Os seus livros são o retrato de uma geração que, em nome de um conceito radical de desejo e liberdade, abriu as portas para o abominável.

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