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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Aventura

O dia em que eu morri

O vulcão Vesúvio, na Itália. (Foto: Rosemaria/Pixabay)

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Como eu costumo dizer, tenha filhos antes dos 20 e suba ao Vesúvio antes dos 30. A razão é a mesma – resistência física.

Tive meu filho quase aos 40. Nos primeiros dois anos de paternidade fui desenvolvendo uma estranha combinação de espasmos musculares que me convenceram de uma doença neurológica terminal. Não era. Apenas fadiga, curada com repouso e doses cavalares de magnésio. Mas você, leitor, entende a ideia. As mulheres, até por razões hormonais, adquirem uma energia extra que vem descrita na literatura científica. Os homens, sobretudo os maduros, apodrecem aos poucos com a criança nos braços.

O Vesúvio é o mais terrível vulcão da Antiguidade. Fica perto de Nápoles. No ano de 79 d.C., uma erupção apagou do mapa algumas cidades célebres da região, como Pompeia e Herculano. Ainda hoje, caminhando pelas ruínas de Pompeia, é possível ver os habitantes da altura, na sua última pose, antes de ficarem petrificados.

Nota mental: se um vulcão entrar em erupção e você não puder fugir, tenha cuidado com a última pose. Pode ser um documento para a eternidade. Eu, por exemplo, tenciono encolher a barriga e ficar em contraposto, como o Davi de Michelangelo; ou talvez em atividade esportiva, como o Discóbolo de Míron. Mas divago. Ou não – esses pensamentos lúgubres ganharam contornos reais durante minha passagem recente pela Itália. Eis os fatos: minha mulher decidiu subir até o topo do Vesúvio. Estaria preparado para o desafio?

Tenha filhos antes dos 20 e suba ao Vesúvio antes dos 30. A razão é a mesma – resistência física

Claro que estava, disse eu, sem ter entendido bem as consequências da minha resposta. Ela deu pormenores – só temos de escalar os últimos 400 metros. Do alto, vemos Nápoles, Sorrento, a ilha de Capri; é um cenário próximo do divino. Pensei: 400 metros é fácil. Não pensei: está 40ºC, um sol de derreter catedrais (obrigado, Nelson), e, a caminho dos 50, um dos meus passatempos favoritos é acordar no meio da noite só para ouvir o estalido dos joelhos quando estico as pernas.

Chegamos ao início dos 400 metros. O motorista parou o carro e desejou “boa sorte”. Reparei que olhava para mim com aquele pressentimento que a mulher de Júlio César deve ter sentido quando ele disse que ia só conversar com Brutus no Senado.

Os primeiros 50 metros são relativamente fáceis: você acredita que já caminhou 300, mas sente um primeiro arrepio quando descobre que só caminhou 25. Além disso, a sua senhora já leva dez metros de avanço, depois 20, depois 30. Seu filho, ainda criança, corre pelo vulcão acima, como se estivesse brincando no pátio da escola. Você, parando aqui e ali (“É só para recuperar o fôlego!”, informa, com voz trêmula, mas já ninguém está escutando), olha para o céu e, na sua imaginação febril, começa a ver dois abutres afiando a faca e o garfo: “Eu fico com o fígado”. “Não, o fígado é meu, fica com o baço.”

A primeira coisa que abandona você é a voz. Por mais água que você beba, é como despejar um copo de líquido no deserto do Saara. Depois, você perde também a respiração típica de um Homo sapiens. Adquire a chiadeira de um cachorro com asma. Finalmente, o pessimismo ataca o seu centro neurológico. Como já sou um pessimista no meu estado normal, passei diretamente para o obituário. “Colunista português, 46, encontrado morto e ressequido quando tentava subir o Vesúvio.”

Acho que foi esse pensamento que me alentou. Morrer, todos vamos. Por velhice, doença, acidente ou outro infortúnio banal. Mas morrer escalando o Vesúvio tem qualquer coisa de romântico, de heroico, de transcendente. Imagino meus fãs, sabendo da notícia, e correndo em peregrinação para o sul da Itália, levando flores e regando a curva fatídica com Johnnie Walker – Black, por favor. Mesmo meus inimigos, na hora da vingança suprema, sentiriam dentro deles uma inveja homérica. “Ele morreu como um Byron e eu aqui, com pedra no rim.”

Com um sorriso nos lábios, mistura sinistra de vaidade e loucura, sinto aquele frêmito de energia que costuma atacar os moribundos nos seus minutos finais. E, sem dar conta, já estou perto do cume, onde a família me aguarda com ar entediado. Eu, feliz por revê-los, abraço os seus corpos assustados e ainda grito: “Quero ser enterrado de pijama e robe! De pijama e robe!” E só então desmaio aos seus pés.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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