Nunca olhei para as redes sociais como o Quinto Cavaleiro do Apocalipse. Ingenuidade minha, talvez. Ou sorte.
A primeira vez que usei a internet tinha 22 anos. Quando conto isso a certos auditórios púberes, eles riem na minha cara. Como era viver nas cavernas, sem WhatsApp ou Facebook? Era horrível, gente. Uma pessoa acordava, vivia a sua vida com outra paz de espírito e, na maioria dos casos, não tinha uma conta do psiquiatra para pagar.
Depois, quando a internet chegou, tratei do fenômeno de forma puramente instrumental: era um meio para, não uma forma de vida em si. Exemplo: o Google é perfeito quando sabemos o que pesquisar. Mas jamais me passaria pela cabeça levar a sério todos os gatafunhos que aparecem na rede como se fossem as tábuas da lei. O ceticismo, que é estimável em qualquer área da vida, é imprescindível na selva virtual.
O mesmo vale para os anúncios personalizados. Os gigantes tecnológicos vendem o meu perfil para que os anunciantes possam tentar-me com uma precisão mefistofélica? Admito que sim. Em certos casos, até agradeço: da música ao cinema, da literatura aos lugares, são incontáveis as descobertas que fiz porque alguém as fez por mim.
Quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a vida virtual
Mas recuso o fatalismo tecnológico de quem acha que somos puras marionetes das redes sociais, sem autonomia ou controle. Não somos. Não sou. A última palavra será sempre a minha.
Tive sorte, definitivamente. A minha geração também. Mas que dizer da geração pós-1996 – a geração Z, na linguagem dos especialistas –, que nasceu, cresceu e irá envelhecer e morrer olhando para a tela do celular?
Esse é o grande mérito de O Dilema das Redes, o documentário do momento na Netflix: quem não conheceu a vida analógica está mais desarmado para a vida virtual. Isso é particularmente chocante em questões de verdade e mentira, talvez a grande observação do documentário.
Sim, as redes viciam; exploram as preferências dos usuários; arruinam a sanidade deles com imagens inatingíveis de perfeição. Sem falar dos likes que brincam com a autoestima da espécie em uma escala literalmente planetária: como afirma um dos tecnossábios entrevistados no filme, todos precisamos da aprovação dos outros, mas não de milhares de outros, de cinco em cinco minutos.
Mas o problema principal está na forma como as redes aprofundam e cristalizam a nossa ignorância. Exemplo: se acreditamos que a Terra é plana, seremos encaminhados para a ala do manicômio onde existem outros malucos como nós. O que significa que as nossas convicções nunca são testadas ou contestadas, são apenas reforçadas.
Se isso é cômico em matéria geofísica (eu gosto dos terraplanistas e me divirto com eles), é menos cômico em matéria política. Esquerda e direita sempre existiram na política moderna; e a diversidade de opiniões é a maior proeza das democracias liberais e pluralistas.
As mídias sociais reatualizam o velho problema do relativismo: se não existe a verdade, mas apenas a minha verdade mil vezes reforçada, isso me autoriza a usar a força bruta para converter os incréus
Mas, para que essas democracias funcionem, é preciso que os participantes do jogo democrático aceitem previamente uma verdade, ou um conjunto de verdades, que é exterior e objetiva. Eu posso preferir a liberdade sobre a igualdade (ou vice-versa). Mas convém que, antes do debate, os diferentes participantes aceitem a validade da democracia, ou da decência, ou da honestidade, ou da racionalidade, como alicerces de qualquer sociedade civilizada. Quando não existe esse consenso mínimo, tudo é violência e gritaria, com os diferentes símios a tentarem esmagar o crânio do inimigo.
No fundo, as mídias sociais reatualizam o velho problema do relativismo: se não existe a verdade, mas apenas a minha verdade mil vezes reforçada, isso me autoriza a usar a força bruta para converter os incréus.
Haverá saída para este labirinto? Há: a internet é um faroeste e, como aconteceu com o próprio faroeste, a regulação e a lei acabarão por chegar a esse território selvagem. O combate ao anonimato, por exemplo, é uma das mais importantes batalhas.
Mas as leis não resolvem tudo. É preciso que os usuários, sobretudo os mais jovens, aprendam a sair do aquário e a respirar fora dele. Isso implica que noções arcaicas de conhecimento e reflexão – ler livros, escutar especialistas, estudar, viver “cá fora” – são hoje mais importantes do que nunca. Não apenas porque nos tornam melhores; mas porque nos tornam mais vigilantes e menos otários perante a última vigarice do feed de notícias.
A festa da direita brasileira com a vitória de Trump: o que esperar a partir do resultado nos EUA
Trump volta à Casa Branca
Com Musk na “eficiência governamental”: os nomes que devem compor o novo secretariado de Trump
“Media Matters”: a última tentativa de censura contra conservadores antes da vitória de Trump
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS