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Penso muitas vezes na eternidade. Sei que o paraíso é uma hipótese distante. O purgatório já estava bem. Mas e se for o inferno?
Sonho com essa possibilidade recorrentemente. Acordo sempre lavado em suor.
Anos atrás, minha ideia de inferno era chegar a uma sala de espera, tipo consultório médico, e encontrar todos os leitores que não entenderam a ironia dos meus textos. "A sério que você defendeu isso?"
E eu passo o resto da eternidade a explicar o real sentido das minhas palavras.
Nos últimos tempos, o inferno que me visita é sempre musical. Pode ser uma sessão interminável de ranchos folclóricos portugueses. Ou uma encenação sem fim de ópera tradicional chinesa.
Em qualquer dos casos, eu estou sentado na plateia, impedido de fugir, e com a mesma cara do ministro Paulo Guedes quando o sanfoneiro de Bolsonaro, por sinal presidente da Embratur, começou a sua "Ave Maria".
Aliás, por falar no Diabo, não é de excluir que o sanfoneiro assalte os meus sonhos intranquilos de agora em diante, destronando os belos guinchos do rancho ou do Xiqu.
O vídeo circulou por Portugal e alguns patrícios disseram, exaustos de tanto rir: é a vingança por todas as piadas de portugueses.
Difícil discordar: estamos na presença de uma obra-prima do humor involuntário. Isso se deve, como normalmente acontece no grande humor, à distância abissal entre intenção e resultado.
Intenção: "homenagear os que se foram" com o coronavírus, afirma o presidente. E um observador atento, espreitando o sanfoneiro lá atrás que ensaia as primeiras notas, teme o pior.
Resultado: as expectativas são superadas quando o sanfoneiro decide juntar a sua voz à "melodia" (digamos assim). Não é que ele cante mal. Em rigor, ele não canta; apenas soluça as palavras, como se houvesse uma intermitência persistente entre o cérebro e as cordas vocais. De tal forma que não sabemos bem se aquilo é uma performance ou um derrame.
Numa altura em que se discute a depredação de várias estátuas pelo mundo, o sanfoneiro de Bolsonaro vandalizou o "Ave Maria" de Gounod com um talento de fazer inveja aos iconoclastas.
É então que acontece o segundo grande contraste: nós podemos rir, pasmados com o número; mas é o rosto de Paulo Guedes que confere uma grandeza épica ao momento.
Guedes não ri. Também não chora. Ele morre perante os nossos olhos sem soltar o mais leve gemido.
Dizem que, no momento derradeiro, vemos passar toda nossa vida num flash. Foi o que aconteceu com o ministro: olhando em frente, ele viajou do Rio de Janeiro até Chicago, do estudo acadêmico ao sucesso financeiro, para se ver ali, junto a um presidente de roupa de treino, estilo Nicolás Maduro, e com um sanfoneiro a cantar uma "Ave Maria" em código Morse.
O rosto de Guedes falava. Mas só repetia a mesma coisa, em loop obsessivo: "Quero morrer. Quero morrer. Quero morrer".
Verdade. Política e humor são velhos parceiros. E, quando existem líderes autoritários, o humor cresce em quantidade e qualidade. Basta ver os livros que se escreveram sobre as piadas comunistas (ou, melhor dizendo, anticomunistas) que as populações do Leste da Europa contavam durante a Guerra Fria para aliviar o prejuízo da existência.
Foi lendo um desses livros – o espantoso "Hammer & Tickle" de Ben Lewis– que fiquei a saber que o regime de Nicolae Ceaușescu tinha uma revisora oficial só para confirmar que o nome do ditador era impresso nos jornais sem gralhas. "Nicolae", quando vira "Nicolai" (com i), significa "pênis pequeno" em romeno.
Essa pequena diferença alimentou uma das maiores indústrias de humor clandestino na história do comunismo.
Fato: o Brasil não é a Romênia; Bolsonaro não é Ceaușescu; e não há a mais remota possibilidade de, mudando o nome do presidente, mudarmos também a dimensão dos seus atributos.
Até porque a singularidade da presidência de Bolsonaro está no fato de ser o próprio presidente, e não a população, a produzir humor. Com um pormenor: quando Bolsonaro quer ter piada, não tem. Quando tenta falar sério, ele se revela um monstro da comédia. É uma maldição de pernas para o ar.
Um dia, quando chegar ao inferno, sei que vou escutar novamente aquela sanfona. Paciência: antes perder o paraíso que perder esta piada.