Quando penso no Muro de Berlim, duas fotografias emergem na minha cabeça. A primeira é a de Hagen Koch, um jovem soldado da Alemanha Oriental, pintando no asfalto uma linha branca para sinalizar onde o Muro seria construído.
A segunda fotografia tem Conrad Schumann como personagem. Schumann, também soldado na Alemanha comunista, saltando o arame farpado para fugir para o Ocidente.
Essas duas imagens simbolizavam duas facetas da mesma moeda. Koch era o soldado obediente, que acreditava com fervor na religião comunista e que via no muro a barreira perfeita para impedir a fuga dos seus compatriotas rumo ao "imperialismo capitalista". Schumann era o homem solitário que, em momento de tensão, adquire coragem e consciência para abandonar o paraíso marxista.
Conhecia razoavelmente bem a história de ambos em 1961, o ano em que o muro foi erguido. Mas desconhecia o que aconteceu quando o Muro caiu em 1989.
Felizmente, Frederick Taylor conta o resto da história no seu Muro de Berlim – Um Mundo Dividido, 1961-1989 (Record).
Se o livro magistral de Frederick Taylor nos ensina alguma coisa é que a história é sempre mais caprichosa do que imaginamos
O soldado Koch, depois do Exército, continuou os seus serviços na Stasi (a temível polícia política do regime) e terminou a carreira como funcionário do Ministério da Cultura.
Quando o muro caiu, foi ele o responsável pelo transporte de 81 pedaços da estrutura para um hotel de Monte Carlo, onde as relíquias foram leiloadas.
Schumann teve uma carreira diferente. Na Alemanha Ocidental, constituiu família, trabalhou na fábrica da Audi e, depois da queda, regressou à terra natal para rever a família e os amigos.
Não foi bem recebido. Para os ocidentais, Schumann era um herói; para os seus, era um traidor – a propaganda do regime comunista nunca lhe perdoou o gesto. Schumann acabaria por se suicidar alguns anos depois.
Eis o grande mérito do livro de Taylor: relembrar o que existe de ambiguidade e ironia na história dessa construção infame.
Essas duas qualidades estão presentes desde o início: quando, em 1961, o mundo acordou para a evidência de uma cidade dividida, não passou pela cabeça das três potências aliadas – os Estados Unidos, o Reino Unido e a França – impedir pela força uma agressão tão óbvia às liberdades fundamentais. Quem estava disposto a uma guerra nuclear por causa de Berlim? Kennedy? Macmillan? De Gaulle?
Obviamente, ninguém. Além disso, e como propaganda anticomunista, o muro poderia ter a sua utilidade.
Igual atitude emergiu quando, em 1989, o mundo voltou a acordar para a evidência da queda do muro. Quem estava disposto a aplaudir uma Alemanha reunificada? “Eu gosto tanto da Alemanha”, escreveu um dia o escritor François Mauriac, “que até prefiro que existam duas”. A frase poderia ter saído dos lábios de Thatcher ou Mitterrand.
Mas a ambiguidade e a ironia não estão apenas nos grandes estadistas. Também estão nos pequenos. Basta lembrar o rastilho que detonou o muro.
Sim, a situação econômica da Alemanha Oriental era catastrófica. Sim, o reformismo de Mikhail Gorbachev na União Soviética e, sobretudo, o fim da Doutrina Brejnev (tradução: o Exército Vermelho não voltaria a punir os países comunistas que decidissem seguir outros caminhos) foram cruciais. Mas o muro caiu por acaso, depois de um funcionário do politburo alemão, Günter Schabowski, não ter feito a lição de casa.
No dia 9 de novembro de 1989, o Partido Comunista entregou a Schabowski a nova lei da emigração do país. As autoridades prometiam ser céleres na aprovação dos pedidos de viagem, mas em nenhum momento determinavam que as fronteiras seriam abertas indiscriminadamente.
Schabowski, com uma mistura de cansaço e displicência, não leu o documento com atenção. E, quando foi confrontado, em conferência de imprensa, com os pormenores da nova lei, limitou-se a confirmar que os alemães do leste poderiam viajar quando quisessem, sem qualquer impedimento. O resto foi história.
Pois bem: é essa história que o mundo se prepara para festejar, 30 anos depois da queda do Muro de Berlim. Mas se o livro magistral de Frederick Taylor nos ensina alguma coisa é que a história é sempre mais caprichosa do que imaginamos.
Em 1989, nos escombros do muro, os mais otimistas não hesitaram em declarar o triunfo definitivo da democracia liberal.
Mas hoje, olhando para o Leste Europeu, sabemos que a história não chegou ao fim e que as notícias do triunfo da democracia liberal foram manifestamente exageradas. A Polônia e a Hungria, dois casos de sucesso em 1989, são dois casos de retrocesso em 2019. Quem se seguirá?
A ambiguidade e a ironia sobreviveram ao muro. É por isso que os festejos, justos e compreensíveis, devem também ser prudentes.