Se o destino dos seres humanos dependesse dos animais, será que eles teriam compaixão de nós? Ou, pelo contrário, os animais tratariam os humanos tal como os humanos os tratam? Sim, invertendo os papéis, haveria animais que teriam humanos como companhia devidamente enfeitados com lacinhos e outros adornos. Mas a maioria dos humanos seria obrigada a trabalhar para os animais, a servir de cobaias para as suas pesquisas científicas – e como fonte de alimento, lógico.
Não estou delirando. Essa é a premissa do romance de Nick McDonell, The Council of Animals, uma fábula em que a sobrevivência da espécie Homo sapiens depende da generosidade dos bichos. Não conto o final. Confesso só que fui incapaz de suspender a minha descrença durante a leitura: alguém duvida que, em caso de necessidade, os animais tratariam os humanos como os humanos tratam os animais?
A pergunta soa abstrata. Passemos a um caso prático. O leitor, defensor dos direitos dos animais, não tolera a forma como eles são usados na pesquisa científica. Isso significa que, em caso de necessidade, o leitor recusaria qualquer tratamento que tivesse envolvido experimentação animal?
Meus princípios são bastante limitados em matéria de direitos dos animais. Como órfão de um doente neurológico, sou a última pessoa do mundo a quem deve se perguntar se trocaria o seu pai pelo bem-estar dos macacos
Vamos tornar o cenário ainda mais realista: existe 1 bilhão de pessoas no mundo que sofrem de doenças neurológicas. Seu pai, sua mãe, você pode ser uma delas. Se amanhã a experimentação com primatas produzir um tratamento eficaz para travar doenças neurológicas degenerativas, você recusaria esse tratamento? Essas são as questões que importam. Gostar de animais, como eu gosto, não está em causa. Desejar que eles sofram o menos possível também não. O que está em causa é saber até onde você vai em nome dos seus princípios.
A revista The Economist, na sua mais recente edição, oferece alguns fatos. Na Europa e nos Estados Unidos, o uso de macacos para pesquisa científica é prática cada vez mais rara. Em contrapartida, ele aumenta nos países asiáticos, como a China e o Japão. O motivo é simples: pela alteração do genoma dos primatas, é possível obter uma fisiologia mais aproximada aos seres humanos. Isso permite um estudo do cérebro que traz resultados mais eficazes no conhecimento e no tratamento das doenças neurológicas.
Claro: há quem afirme que é possível uma substituição total de animais por testes in vitro, por simulação de computador e até pelo uso de seres humanos voluntários. Mas mesmo que isso fosse possível com igual eficácia – pessoalmente, não conheço nenhum cientista que afirme algo tão radical –, há também quem defenda o contrário: a importância da experimentação animal, não apenas para doenças determinadas, mas para descobertas inesperadas. A revista, a esse respeito, lembra o nome de Vittorio Erspamer, que na década de 1930 descobriu a serotonina nos intestinos de coelhos e sapos. Dizer que a serotonina salvou a vida de milhões de seres humanos com transtornos psiquiátricos seria um eufemismo.
Até onde estou disposto a ir em nome dos meus princípios? Sou onívoro. Meus princípios são bastante limitados em matéria de direitos dos animais. Aliás, essa evidência me lembra a reação dos meus alunos, sobretudo dos autoproclamados defensores desses direitos, quando os informo que não é possível defender os animais e continuar a ter um filé no prato. O direito à vida, logicamente, é o valor mais importante na hierarquia dos direitos. Alguns não tinham pensado nisso – e raros são aqueles que abandonam o churrasco.
Por outro lado, como alguém que já esteve numa sala de operações (na condição de doente), posso testemunhar que prefiro a anestesia geral a qualquer recusa ética pelo fato de milhares de animais terem sido cobaias desse apagamento momentâneo. Finalmente, e como órfão de um doente neurológico, sou a última pessoa do mundo a quem deve se perguntar se trocaria o seu pai pelo bem-estar dos macacos.
Mas admito que possa estar errado no meu egoísmo humano, demasiado humano. Admito que o leitor possa ser bastante mais virtuoso do que eu, sacrificando a sua vida e a vida dos seus por uma questão de princípio. E quem sabe? Talvez o futuro, pelo menos no Ocidente, possa chegar a um compromisso: viveremos menos, viveremos pior, mas viveremos sem transferir para os outros seres vivos o preço da civilização.
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