Em 1990, morria Michael Oakeshott. E os jornais ingleses, com seus generosos obituários, questionavam seriamente se o país tinha perdido o seu maior filósofo.
A pergunta deixou vários espíritos confusos. Espíritos refinados, para começar, que não tinham lido Oakeshott. Mas também pessoas “comuns”, vizinhas do dito filósofo e que jamais pensaram que aquele velhinho simpático que vivia junto a elas, na zona rural do Dorset, era um homem de renome.
Sim, ele tinha por hábito dirigir pelas redondezas a velocidades alarmantes. Mas, tirando essa bizarrice, habitava uma casa modesta com a mulher (a terceira ou a quarta, já não sei) e fazia questão de reparar os telhados ou cuidar do jardim. O maior filósofo inglês do século 20?
A culpa é do próprio, se “culpa” é a palavra certa. Escreveu muito. Publicou pouco. E a carreira acadêmica foi mínima. Mas vamos às apresentações.
Michael Joseph Oakeshott nasceu em 1901. Formou-se em História na Universidade de Cambridge. Passou pelas universidades de Marburg e Tübingen. Serviu o país na Segunda Guerra Mundial. E, em 1951, substituiu Harold Laski, um pensador marxista, na London School of Economics. De 1951 a 1968, a cátedra de Ciência Política foi dele. Quem assistiu às aulas nunca mais esqueceu o brilhantismo do homem.
Tenho pena de não ter assistido. Mas, se existe autor que releio sempre que posso, só para não me esquecer do essencial, é Oakeshott. O seu Rationalism in Politics, livro de ensaios, tem essa proeza rara de combinar grande filosofia com grande literatura. Como em Montaigne, que ele amava. E o seu On Human Conduct – conhecido pelos alunos aterrorizados como “the black book”, e não é pela cor da capa – é uma obra-prima do pensamento político contemporâneo.
Enquanto esses livros não estão traduzidos no Brasil, existe A Política da Fé e a Política do Ceticismo, que a É Realizações acaba de editar com prefácio de Luiz Felipe Pondé, introdução de Timothy Fuller e posfácio do tradutor Daniel Neto. É um trabalho póstumo, publicado em 1996, em que o autor se ocupa da “fé” e do “ceticismo” políticos, ou seja, sem nenhuma conotação religiosa (fé) ou filosófica (ceticismo). Defende Oakeshott que esses dois polos marcam a modernidade dos últimos cinco séculos ao apontarem ao poder político dois caminhos distintos.
A “política da fé” alicerça-se na busca da perfeição terrena, procurando eliminar a ação da contingência ou a mera dúvida humana. É o produto da passagem do mundo medieval para o absolutismo monárquico, quando um brutal acréscimo de poder alimentou nos teóricos e nos príncipes a noção prometeica de que era possível refazer o mundo.
Nesses alvores da modernidade, encontramos também a “política do ceticismo”. Não como resposta direta à “política da fé”, mas como um entendimento distinto da natureza e do alcance do poder. Para os partidários do ceticismo, a função de um governo é manter um conjunto de direitos, deveres e formas de reparação – um modus vivendi – sem pretender dirigir uma sociedade a um fim determinado. São os homens que devem escolher os seus fins, sem a tutela paternal de um governante.
A proposta de Oakeshott é importante porque abandona as divisões clássicas entre esquerda e direita, nascidas no contexto da Revolução Francesa. Como o autor explica, é possível encontrar seguidores da fé e do ceticismo em todas as famílias políticas, uma evidência que a história não se cansa de provar. Os monismos perfectibilistas do comunismo ou do nazismo são duas expressões de fé; mas qualquer ideologia política antipluralista, seja de esquerda ou de direita, está mais próxima da fé que do ceticismo.
Porém, não se pense que só a “política da fé” tem consequências ruinosas. O ceticismo também pode ser acometido pela sua nêmesis característica: a paralisia e o relativismo.
O livro de Oakeshott, como qualquer grande obra de filosofia, não envelheceu uma ruga. Basta contemplar a política ocidental para vermos como a tentação dos extremos domina a selva pública. De um lado, o fanatismo da fé, a arrogância simiesca de quem acredita ter na mão a chave da história. Do outro lado, a estagnação e a frivolidade de quem é incapaz de reformar ou liderar racionalmente as democracias ocidentais. A via média entre os extremos, defendida por Oakeshott, está hoje abandonada.
É um cenário que dá vontade de desaparecer. Exatamente como Oakeshott desapareceu na paisagem belíssima da Inglaterra rural.
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