Gostei de saber que a escritora Margaret Atwood venceu a sexta edição do Prêmio Hitchens. Explico melhor. Todos os anos, desde 2015, a revista The Atlantic lembra o seu antigo colunista, Christopher Hitchens, e premia “um autor ou jornalista cujo trabalho reflete um compromisso com a liberdade de expressão e uma vontade de perseguir a verdade sem terem conta as consequências pessoais ou profissionais”. Atwood cumpre todos os requisitos.
Mas melhor, muito melhor, é o discurso que ela proferiu ao receber o prêmio em Nova York. Lembrou Hitchens: certa vez, num festival literário em Hay-on-Wye (suspiro por esse paraíso terrestre!), ambos debateram em palco. Mas nenhum deles usou os sentimentos pessoais como argumento ou desculpa. Isso seria absurdo e até vexatório entre adultos, sobretudo entre dois adultos alfabetizados.
O problema dos sentimentos, quando desligados de qualquer racionalidade, é que eles são sempre uma saída fácil para os bons e maus selvagens
Não mais. Hoje, o que parece definir as chamadas guerras culturais é a elevação dos sentimentos a fonte de autoridade. Se eu sinto que algo me ofende ou me deixa desconfortável, isso é razão suficiente para cancelar algo ou alguém. Essa atitude, compreensível em crianças de até 3 anos, tem os seus abismos, lembra Atwood: se aceitamos que os sentimentos são argumentos (ou desculpas), então um homem pode matar uma mulher (ou vice-versa, presumo) simplesmente porque se sentia estressado naquele dia.
Pois é: o problema dos sentimentos, quando desligados de qualquer racionalidade, é que eles são sempre uma saída fácil para os bons e maus selvagens. Mas Atwood lembra outra distinção que foi apagada pela fúria dos sentimentais: entre crença e verdade. Numa espécie de regressão secular que faria as delícias dos medievais, a crença também foi alçada à condição de verdade. O fato de uma crença não poder ser provada é irrelevante para a discussão. Tal como os sentimentos, tudo que interessa é alguém, algures, ter uma crença na cabeça. Esse fato é suficiente para provar a sua veracidade.
Aliás, é possível combinar as duas atitudes – eu sinto, eu acredito – e obrigar terceiros a respeitar esses sentimentos e crenças. Mas será legítimo exigir esse respeito? Ou, aplicando o método Atwood de correção conceitual, também é preciso estabelecer uma diferença entre “tolerar” e “respeitar”?
O nosso tempo usa as duas palavras como se fossem sinônimos. Não são. Voltaire ou John Locke nunca escreveram ensaios sobre o respeito. Apenas sobre a tolerância. É uma diferença abissal. Respeitar é venerar, honrar, cultuar. Tolerar significa apenas aceitar, deixar ser, deixar estar. Voltaire ou Locke sabiam que uma sociedade livre não pode exigir que todos respeitem, ou venerem, um único dogma. Só existem sociedades livres e alguma paz social quando, apesar das diferenças, as pessoas se toleram umas às outras. Aceitando, deixando ser, deixando estar, sem terem de aplaudir aquilo de que não gostam.
Voltaire ou Locke sabiam que uma sociedade livre não pode exigir que todos respeitem, ou venerem, um único dogma
Ultrapassar essa fronteira não significa apenas submeter a sociedade a novos dogmas – e a novas inquisições. Significa, em casos menos dramáticos, produzir piadas sobre piadas, como os estúdios Disney descobriram recentemente. Informa o jornal The New York Times que, em nome dos bons sentimentos, a Disney cancelou uma versão realista de Branca de Neve e os Sete Anões porque o ator Peter Dinklage, que tem uma forma de nanismo, manifestou a sua repulsa contra a natureza atrasada, por assim dizer, da história. Outros atores com nanismo protestaram: eram sete oportunidades de trabalho que se perderam só porque Dinklage, uma estrela de Hollywood, resolveu detonar o projeto.
Mas os bons sentimentos não se limitam a filmes novos. Há uma comissão de espectadores sensíveis, entre aspas, que sinaliza problemas com os antigos. Um dos alvos foi Peter Pan. Segundo a comissão, a fada Sininho revela complexos com o tamanho do próprio corpo (“body conscious”) e mostra uma dependência emocional face a Peter que pode perturbar certos públicos. Sem falar do óbvio: o Capitão Gancho, por ser um vilão, “pode expor a Disney a acusações de discriminação ou preconceito contra indivíduos com deficiência”. Imagino que, em próxima versão realista da história, atores sem a mão direita também serão barrados. Só para não ofenderem os sentimentos de alguém.
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