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Bato essas linhas ao som de jazz, escutando o álbum de Natal dos Peanuts. Era inevitável. Passam 100 anos sobre o nascimento de Charles M. Schulz, o criador de Charlie Brown e companhia. Nunca fui um fã de quadrinhos. Amigos de geração foram alimentados a Asterix e Tintim. Não eu. Exceto se falarmos dos Peanuts. Quem me conhece dirá que era quase inevitável. Melancolia é o meu nome do meio. Charlie Brown é o irmão mais velho, ou mais novo, que nunca tive: a sua angústia existencial casava bem com a minha.
Mas os Peanuts também valem a pena pelo retrato histórico. Da ameaça nuclear à Guerra do Vietnã, sem esquecer a luta pelos direitos civis, as crianças debatem os assuntos como se fossem adultos, embora não seja fácil determinar a posição política do próprio Schulz. As suas opiniões são dotadas de uma ambiguidade que permite interpretações mil (e equívocos idem).
É precisamente essa dimensão ideológica que Blake Scott Ball apresenta no mais brilhante livro sobre o assunto: Charlie Brown’s America: The Popular Politics of Peanuts. Charles Schulz definia-se como um “liberal”, mas usava o termo num sentido antigo, apelando para as suas dimensões de civilidade e tolerância. Os seus personagens são frágeis na sua humanidade e ninguém é tão frágil como Linus, que transporta o seu “cobertor de segurança” para todo lado.
Os Peanuts também valem a pena pelo retrato histórico. Da ameaça nuclear à Guerra do Vietnã, sem esquecer a luta pelos direitos civis, as crianças debatem os assuntos como se fossem adultos
Explica Scott Ball que “cobertor de segurança” também tinha um significado militar durante a Guerra Fria: era usado como referência ao programa nuclear americano. Linus subverte esse significado para mostrar a ansiedade que passou a dominar a sociedade americana perante a possibilidade de aniquilação total. Será isso que explica o interesse crescente de Linus pela Bíblia, como se apenas a Cidade Celeste nos pudesse salvar?
A religião está presente nos Peanuts, sim, mas também de forma ambígua. Em 1962 e 1963, lembra Scott Ball, a Suprema Corte decidiu proibir as escolas públicas de imporem orações e estudos bíblicos aos alunos. Isso horrorizou a falange evangélica. Charles Schulz, ele próprio crente, desenhou o assunto: vemos Sally Brown entrando em casa para falar em segredo com o irmão Charlie. Quando estão a sós, ela conta em voz baixa: “Hoje rezamos na escola!” A tirinha foi aplaudida pelo fervor dos evangélicos: ali estava Schulz a defender os cristãos perseguidos! Na verdade, era o contrário: Schulz apenas mostrava como era ridícula a conversa da perseguição. E acrescentou, em entrevista: a oração é um assunto pessoal, não um número teatral em espaço escolar. Esse, aliás, era um dos males da América: a confusão permanente entre patriotismo e cristianismo – uma confusão que, nem de propósito, está de volta ao conservadorismo nacional americano (e brasileiro, já agora).
Mas é sobretudo na luta pelos direitos civis que os Peanuts se destacam. Como esquecer Franklin, a criança negra que convive com o restante da turma? Só agora, lendo o livro de Scott Ball, entendi a importância que Franklin teve na década de 1960 para os leitores negros, que aliás pediram a Schulz o personagem (hoje, Schulz seria acusado de “apropriação cultural”; ah, o progresso...). A tirinha de estreia de Franklin é simples e devastadora: Charlie Brown brinca na praia; Franklin aparece; ambos constroem um castelo de areia; Charlie convida Franklin para ir lá em casa. Nada de mais? Tudo demais. Praias, cinemas, salas de aula eram territórios em disputa na luta contra a segregação racial. Franklin vai aparecer em todos esses espaços e será tratado pelas crianças como apenas mais uma criança. É a color-blindness das tirinhas que é verdadeiramente revolucionária.
Finalmente, a Guerra do Vietnã. Como apoiar os rapazes que combatiam longe e, ao mesmo tempo, condenar uma guerra ilógica e imoral? Snoopy foi a resposta, com seu capacete e óculos de aviador, imaginando-se na Primeira Guerra em perseguição ao temível Barão Vermelho. Quantas alegorias! Para começar, falamos da Primeira Guerra, não da Segunda: em 1914 não havia a limpidez moral de 1939. O Barão Vermelho, sempre fugidio e traiçoeiro, era a metáfora perfeita do vietcong, que agia com igual astúcia. E Snoopy era a encarnação do governo americano: obsessivamente perseguindo a vitória e frustrado pelos resultados.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos