São Paulo, 11 horas da manhã. Entro no táxi, indico o endereço ao motorista, o carro inicia a viagem. Conversamos. Política, pandemia, trânsito na cidade. A certa altura, ele pergunta: “De onde você é?” Respondo, um pouco surpreso: “Portugal”. Ele sorri e depois elogia: “Você fala muito bem a nossa língua”.
Agradeço, honrado: quem diria que, vindo de Portugal, eu saberia falar essa língua chamada português? Aliás, até acrescento: “Língua difícil, mas eu vou chegar lá”. Ele, compreensivo, consola a minha insegurança: “Imagina! Já está bom assim”.
Seria fácil olhar para o motorista e deplorar a ignorância dele. Será que ele nunca estabeleceu uma ligação entre “Portugal” e “língua portuguesa”? Pergunta absurda. Talvez o ignorante seja eu. Talvez o meu português seja mesmo diferente do dele. Talvez ele fale “português” e o meu português seja uma melodia parecida, familiar, quase igual. Quase.
Não sabem os puristas da língua, esses que sonham com um idioma unificado e até fizeram um Acordo Ortográfico, que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?
É uma hipótese que não me perturba, apesar de perturbar os puristas da língua, que sonham com um idioma unificado. Conheço vários: confrontam-se com versões brasileiras ou africanas – na sintaxe, no léxico, na semântica – e vão a correr buscar os dicionários e as gramáticas, com a fúria punitiva de um mestre-escola. Alguns até fizeram um Acordo Ortográfico, a suprema tentação racionalista, para determinar como milhões de falantes devem usar o idioma. Pobrezinhos. Não saberão eles que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?
Tomo essa ideia de empréstimo a Fernando Venâncio e ao seu livro Assim Nasceu uma Língua – edição portuguesa da Guerra & Paz –, que não me canso de recomendar. O português é anterior a Portugal? Sim, se olharmos para a Península Ibérica, algures no século 6.º, quando o espanhol e o galego, ambos derivados do latim, se escutavam por aquelas bandas. O que parece ter singularizado o galego foi o abandono de certas letras intervocálicas, como o “l” ou o “n”, que acabariam por definir o português. “Voar” não é “volar”. “Perdoar” não é “perdonar”.
Quando Portugal nasce em 1143, não nasce nenhuma língua portuguesa. Dom Afonso Henriques não era como aquele personagem de um filme de Woody Allen, que obrigava todo mundo a falar subitamente sueco na sua recém-criada república das bananas. O galego era o idioma do baronato medieval do norte do país, pelo menos até inícios do século 14, quando começa um afastamento dessa raiz “rural”. Introduz-se o “i” entre vogais, por exemplo, e os galaicos “avea”, “balea” ou “cadea” viram “aveia”, “baleia”, “cadeia”.
Mas a deslocação do poder político para sul, para Lisboa, também faz com que a língua, ironicamente, se aproxime do espanhol, considerada a língua erudita pelas elites. É o momento em que o “l” e o “n”, expulsos séculos antes, regressam pela porta da frente. “Dooroso” é agora “doloroso”. “Lumioso” é “luminoso”. Esse namoro continuará até ao século 18, quando a França das luzes irradia sobre a Europa a sua supremacia e influência. Pelo menos, até o inglês acabar com a festa francófona, contaminando o linguajar dos patrícios.
Como a fala do Brasil ou Moçambique pode seguir fiel ao marido português?
Eis a verdade: a língua portuguesa sempre foi promíscua. E quando não estava recebendo influências terceiras, ela própria criava suas extravagâncias. Em que outras línguas românicas se encontram adjetivos como “inglório”, verbos como “fruir” ou substantivos como “pelintra”? A Espanha pode ter muita gente fidalgal; mas tente encontrar por lá alguém “figadal”.
Nas palavras de Fernando Venâncio, “a história do português é, em larga medida, a história das suas tentativas de afastamento do galego”. E o que é válido para o passado será válido para o presente e para o futuro: como esperar que a fala do Brasil, ou de Angola, ou de Moçambique, continue fiel ao marido português? O marido nunca foi fiel, para começar. Razão pela qual não deve fazer cena quando “flagra” a sua dona numa “paquera”, num “amasso” ou numa “transa”.
Nos próximos anos, nas minhas estadas paulistanas, prometo continuar o estudo da língua que os nativos falam. Quem sabe? Um dia, eu próprio serei capaz de falar na perfeição esse tal de português.
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