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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Histórias de encantamento

Stalin (em pé, de roupas claras) participa da assinatura do pacto Molotov-Ribbentrop, de não agressão com as forças nazistas, em 1939. (Foto: National Archives & Records Administration/Domínio público)

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Esperava mais. Falo do discurso de Vladimir Putin no Dia da Vitória. A expectativa seria que Putin declarasse guerra à Ucrânia. Ou que anunciasse a mobilização dos reservistas. Não aconteceu. As coisas não correm como o nosso Vladimir gostaria: com milhares de mortos em um mês e meio de conflito – 15 mil? 20 mil? –, ele parece ter feito o mesmo erro de Hitler, em 1941, na Operação Barbarossa, quando achou que a União Soviética estaria conquistada em pouco tempo. A confiança do Führer era tão elevada – os grandes tiranos sempre foram grandes otimistas – que o exército alemão encomendara equipamento militar de inverno só para parte de seus homens: os que ficariam na União Soviética como força ocupante.

O discurso de Putin foi uma repetição das velhas mentiras: o Ocidente queria invadir a Rússia e usou os neonazistas da Ucrânia como marionetes. Agora, é preciso que Moscou faça com os nazistas ucranianos o que fez com os originais. Destruí-los. A fala de Putin, obviamente paranoica, desonra a memória dos que realmente combateram Hitler. Homens e mulheres comuns que passaram pelo inferno em Leningrado ou Stalingrado.

Ao contrário do povo russo, o Kremlin tem pouco de que se orgulhar quando se trata da Segunda Guerra

Mas mesmo nessa história de sacrifício – na resistência a Hitler, morreram mais de 20 milhões de russos – Putin não conta a história toda. Será preciso recordá-la? Essa é a tarefa que Ian Ona Johnson relembra em Faustian Bargain: The Soviet-German Partnership and the Origins of the Second World War (“Barganha faustiana, a parceria soviético-germânica e as origens da Segunda Guerra Mundial”), da Oxford University Press. Já fiz referência a esse livro numa coluna passada, mas é inevitável não voltar a ele nos dias de amnésia que vivemos. Porque Johnson mostra como a colaboração entre a Alemanha e a União Soviética não começou com o infame Pacto de Não Agressão entre os dois países nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Começou antes.

Em 1919, quando os vencedores da Primeira Guerra se reuniram em Paris para redesenhar um mundo entre as ruínas, a Alemanha foi exemplarmente punida. Persiste a polêmica de saber se o Tratado de Versalhes foi mais gravoso do que, por exemplo, o Tratado de Brest-Litovsk, que a Alemanha impôs à Rússia em 1918 para que os bolcheviques saíssem do conflito. É uma boa pergunta: a Rússia perdeu um terço da sua população e terra fértil e viu a sua capacidade industrial dizimada para metade. Razão pela qual é perfeitamente razoável imaginar que o Tratado de Versalhes que os aliados impuseram à Alemanha não seria muito diferente da punição que a Alemanha teria imposto aos aliados, caso tivesse vencido a guerra.

Seja como for, a Alemanha e a nova União Soviética tinham dores comuns, que rapidamente se tornaram uma colaboração. Conta Johnson que, depois do Tratado de Rapallo de 1922, que normalizou as relações entre os dois países, Moscou e Berlim começaram uma parceria militar. Os alemães garantiam tecnologia, conhecimento e capital ao depauperado Exército Vermelho. A União Soviética permitia que a Alemanha contornasse as limitações militares impostas por Versalhes, concedendo em solo soviético as bases, as academias, os laboratórios e as fábricas que começaram a rearmar o exército germânico.

A colaboração terminou com a ascensão ao poder de Hitler, em 1933. Mas foi retomada em 1939, e sempre com o mesmo objetivo: aumentar e modernizar a capacidade bélica dos dois países. Nesse sentido, o Pacto de Não Agressão, assinado nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, deve ser visto como a consequência lógica de uma parceria mais antiga, sem a qual a Alemanha e a União Soviética não teriam emergido como os dois titãs militares da Europa pós-1918. Ou, em outras palavras, a Alemanha e a URSS puderam dividir a Europa de Leste em “esferas de influência” (adoro eufemismos) porque ambas reforçaram o poder de ambas. Pelo menos, até Hitler quebrar o acordo – para sua perdição.

O sacrifício russo na Segunda Guerra foi inegável e inestimável. E ele deve ser celebrado pelos homens e mulheres comuns, vítimas de duas tiranias gêmeas: a de Hitler e a de Stálin. Mas a apropriação desse sacrifício por um regime que faz em 2022 o que Hitler fez em 1941 – invadir um país soberano para submetê-lo aos caprichos de um poder imperialista – é irônica e grotesca. Da Segunda Guerra Mundial, o Kremlin, ao contrário do povo, tem pouco de que se orgulhar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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