Cena de “Leviatã”, filme de Andrei Zvyagintsev.| Foto: Divulgação
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1. O Leviatã tem as costas largas. Não falo da besta bíblica que habita o fundo dos mares e representa o mal em estado puro. Falo do Leviatã de Thomas Hobbes, entendido como um Estado onipotente e onipresente, soberano e absoluto. Tenho uma visão mais otimista sobre o bicho e até olho para Thomas Hobbes como uma espécie de protoliberal: alguém que colocou em mãos humanas, e não divinas, o “contrato” social que nos resgata de uma vida “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”.

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Mas divago. Porque a verdade é que o Leviatã que ficou na imaginação política é muito próximo do Leviatã bíblico: uma criatura medonha, predatória, que esmaga a liberdade individual dos súditos. Esse é o Leviatã que emerge do filme homônimo de Andrei Zvyagintsev e que merece ser visto, no contexto da guerra na Ucrânia, para entendermos melhor a Rússia de Putin.

É a história da luta desigual entre Kolia (Aleksei Serebriakov) e o prefeito da cidade, o corrupto Vadim (Roman Madianov). O prefeito quer a casa e o terreno de Kolia para construir mais um negócio obscuro. Do seu lado, Vadim tem os seus capangas e ainda a polícia, os tribunais e a própria Igreja Ortodoxa, que o incita a exercer o poder sem contemplações ou compromissos. Vadim é o Estado russo em toda a sua monstruosidade. Kolia tem apenas um amigo advogado, Dmitri (Vladimir Vdovichenkov), vindo de Moscou para pleitear a sua causa. Mas Dmitri está longe de ser um modelo de virtudes. Pelo contrário: ao abrir a porta da sua casa ao amigo, Kolia estará trazendo a destruição para dentro da família.

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A Rússia procura reconstruir seu passado czarista como um urso embriagado

Leviatã é o retrato de uma sociedade na qual os indivíduos são “moscas de um verão” (obrigado, Burke), e o Estado, tentacular e tirânico, só conhece uma linguagem no trato com os cidadãos: a da brutalidade e da humilhação. Um destino que não se limita aos tempos presentes, mas à história moderna da própria Rússia. Uma sequência do filme, simultaneamente divertida e tristíssima, ilustra esse fado: os amigos saem para um piquenique nas montanhas e, na hora de exercitarem a pontaria, usam retratos antigos de antigos líderes da União Soviética como alvos. É uma espécie de consolação, eu sei, tão própria dos servos quando não estão a ser vigiados pelos seus donos.

2. O Leviatã não larga a imaginação russa. Que o diga Sergei Medvedev e o seu The Return of the Russian Leviathan, “o retorno do Leviatã russo”. Quem é Medvedev? Uma espécie de Evelyn Waugh russo que, nos últimos anos, tem cartografado a regressão política e mental do Kremlin em artigos literariamente brilhantes e hilariantes. O livro, vencedor do Prêmio Pushkin no Reino Unido, é uma coletânea desses artigos.

Eis a tese de Medvedev: um portal do tempo abriu-se com os governos de Putin e de lá saíram os dinossauros da autocracia e do imperialismo. Para quê? Para lançarem quatro guerras em simultâneo: pelo espaço, pelos símbolos, pelo corpo e pela memória.

A guerra pelo espaço está em cena na Ucrânia, como já esteve na Geórgia e estará, quem sabe, na Moldávia: incapaz de viver civilizadamente entre as nações, aceitando o seu estatuto pós-imperial como tantos outros países (França, Inglaterra etc.), a Rússia procura reconstruir o seu passado czarista ou soviético com a delicadeza de um urso embriagado. A guerra pelos símbolos está na aproximação à Igreja Ortodoxa, aos seus rituais, às suas obsessões e nostalgias, bem como aos brinquedos militares que desfilam regularmente pelas ruas, como se ainda existisse uma Guerra Fria. A guerra pelo corpo está na forma intrusiva como o Estado procura intrometer-se no quarto de cada um, entre os lençóis, e até moralizando sobre a inviolabilidade de certos orifícios. A guerra pela memória faz-se pelo apagamento dos crimes do passado – ou, então, pela reabilitação de alguns dos seus criminosos mais célebres. Como Stálin, claro.

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Porém, o que estas guerras revelam é um Estado disfuncional e paranoico, que diverte e assusta – exatamente nessa ordem: um dos pontos mais brilhantes de Medvedev é a forma como a retórica, inicialmente circense, foi dando lugar às práticas mais insanas, como se os palhaços tivessem tomado conta do país. “Os adultos saíram, para que os meninos possam fumar, praguejar, zombar com quantidades ilimitadas de sorvete e roubar a bicicleta há muito cobiçada do menino do lado”, escreve Medvedev. Pelo menos, “até os pais voltarem”. E a que horas eles voltam?

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]