Estou cansado de humoristas ocidentais que declaram em público os seus tormentos. Hoje, é difícil fazer humor, dizem eles, apontando o dedo trémulo para o “politicamente correto”, a fúria das redes sociais ou a imbecilização progressiva da sociedade.
Entendo o que dizem. E longe de mim negar que o “politicamente correto”, entendido como qualquer tentativa de limitar a liberdade de expressão por meios extrajudiciais, é uma praga irritante. Mas é preciso não confundir uma mosca com um bisonte. Só respeito humoristas que, na hora da lamúria, temem ser sequestrados, estuprados, queimados vivos ou assassinados. Todo o resto é frescura.
Que o diga Larry Charles, uma das cabeças responsáveis pela maior comédia televisiva de todos os tempos (é preciso dizer qual é? Seinfeld, obviamente). Agora, Charles resolveu filmar para a Netflix um documentário em quatro partes sobre o humor em lugares distantes. Lugares como o Iraque, a Nigéria ou a Libéria (palavra de honra: a Libéria!). O resultado é Larry Charles’ Dangerous World of Comedy.
Nesses países, o problema dos humoristas, lamento, não é o “politicamente correto”, as redes sociais, nem a pressão dos idiotas sérios. As ameaças se dão pelo nome de Al Qaeda, Estado Islâmico, Al Shabaab e vários esquadrões da morte que são pouco conhecidos pelo seu sentido de humor.
Só uma cabeça como Larry Charles poderia formular essas questões: como será apresentar um Daily Show no Iraque e fazer piadas com os goat fuckers do EI? Como será fazer stand-up entre os escombros de Monrovia? E, na era do empoderamento feminino, que desafios enfrentam as humoristas da Nigéria, onde a violência contra mulheres bate todos os recordes?
Larry Charles partiu à descoberta e entrevistou os humoristas que sobrevivem ainda (os que foram mortos nos entretantos têm direito a uma referência especial). No Iraque, encontramos Ahmed Albasheer, uma espécie de Jon Stewart local que nasceu para a comédia no dia em que foi sequestrado por jihadistas. Preso nas masmorras, o rapaz olhou em volta. Testemunhou violações, castrações, homicídios. Quando chegou a sua vez, começou a contar piadas. Os jihadistas riram. Ele escapou.
É um destino comum. Na Libéria, uma das mais conhecidas humoristas foi estuprada aos 12 anos e passou a guerra entre cadáveres. Hoje, essas experiências fazem parte do seu repertório, juntamente com piadas sobre a epidemia de aids e o surto do ebola que devastou o país. É a vida: cada cultura tem os seus dramas para expiar. Nos clubes de comédia de Londres ou Nova York, são os hilariantes dilemas da meia-idade. Na África, é a falta de sacos mortuários para aviar o pessoal.
Mas estou sendo injusto. Porque Larry Charles também dedica algum tempo a comediantes ocidentais. Não, não falo dos “perseguidos” Kevin Hart ou Louis C.K.
Falo de Bobby Henline, por exemplo, um veterano do Exército dos Estados Unidos que foi bombardeado no Iraque e, espantosamente, sobreviveu. Foi o início de uma carreira: hoje, em espectáculos de stand-up, Bobby, ou o que resta dele (o corpo está queimado, o rosto já não existe), deslumbra as plateias com as suas histórias.
A primeira piada que ele contou profissionalmente foi sobre o seu “defeito de nascença” (“mesmo quando estava grávida de mim, minha mãe continuou trabalhando no circo como comedora de fogo”). Mas essa não é a melhor piada. É essa aqui: “I’m so cheap I expect a discount on my cremation”. Lamento. Só funciona completamente em inglês, embora uma tradução soe assim: “Sou tão pão-duro que espero um desconto na minha cremação”.
O leitor sente-se desconfortável com esse humor? Não deve. O magistral documentário de Larry Charles tem duas mensagens otimistas que contrastam severamente com os cenários de horror que ele visitou. A primeira mensagem é que o humor é impossível de eliminar quando falamos de seres humanos. As circunstâncias podem ser inomináveis; mas há sempre um raio de luz que se intromete entre a loucura, o ódio e o sofrimento. A segunda mensagem, que decorre da primeira, é que Freud tinha razão quando dissertava sobre o poder libertador das piadas – rimos ou enlouquecemos. Esse lema, que sempre tomei como a verdade das verdades pessoais, encontrou agora uma confirmação universal.
Espero nunca me esquecer disso. E, da próxima vez que assistir a um humorista brasileiro ou português chorando copiosamente porque é insultado nas redes sociais, prometo oferecer-lhe uma passagem para Bagdá, Monróvia ou Abuja. Sem possibilidade de retorno.