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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Romeu não amou Julieta

Romeu e Julieta em detalhe de pintura de Ford Madox Brown.
Romeu e Julieta em detalhe de pintura de Ford Madox Brown. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Tempos atrás, li algures que a mais recente produção de Romeu e Julieta, na Inglaterra, incluía um folheto com algumas informações para o público. Não sobre o enredo, o bardo, os atores ou as encenações históricas da peça. As informações eram de outro tipo: trigger warnings, digamos, alertando que o suicídio dos amantes era uma simulação; que o sangue jorrado em palco era falso; e que as lutas de espadas também.

A saúde mental, hoje cada vez mais rara, justificava esses avisos, não fosse alguém da audiência lembrar o tempo em que viveu em Verona e quase morreu de amor por um Montéquio ou uma Capuleto.

Tive pena de não ter visto. Pagaria bom dinheiro para ter esse folheto e poder legá-lo aos meus netos como prova física da nossa decadência. “O mundo era assim em 2021”, deixaria em testamento. “Mas depois parou.” E parou por quê?

Vivemos todos numa ala psiquiátrica sob os cuidados de “enfermeiros sociais”

Não, obviamente, pela natureza absurda e infantil com a qual o público é tratado. Mas porque vários estudos científicos chegaram à conclusão que trigger warnings podem agravar, e não aliviar, o trauma de origem. Pelo menos, a New Yorker afirma que sim, lembrando também o caso de Romeu e Julieta e resumindo o estado da arte: quando há avisos não solicitados sobre desconfortos potenciais, isso pode levar a vítima a relembrar mais intensamente o seu trauma particular. Como se esse trauma fosse o elemento central, e inapagável, da respectiva identidade.

Sobre esse ponto, nunca tive dúvidas. Meus conhecimentos sobre doença mental são assaz modestos – e, como se diz na informática, apenas limitados à ótica do usuário. Mas não é preciso ter lido Karl Kraus para compreender que certas terapias são, na verdade, a doença que procuram curar. Diz a revista que as universidades em que os trigger warnings fizeram sucesso podem agora ser obrigadas a removê-los para evitarem os exatos processos judiciais que procuravam evitar. Que delícia! Imagino até o filme: o aluno que processou a universidade por não avisar pode ser o mesmo que processa por ter sido avisado.

Há uma certa ironia em tudo isso. Mas, depois das risadas inevitáveis, o cenário é mais melancólico: ele revela o espírito de uma época. Para começar, uma época que se comporta como se vivêssemos todos numa ala psiquiátrica, sob os cuidados intensivos de “enfermeiros sociais” diversos.

Como explica Mick Hume em obra dedicada ao assunto – Trigger Warning: Is the Fear of Being Offensive Killing Free Speech? –, de início os trigger warnings tinham um papel limitado: alertar pessoas com estresse pós-traumático de que alguns relatos em fóruns específicos da internet poderiam ser desconfortáveis. Rapidamente, essa cultura preventiva saltou para o mundo real e se espalhou pelas universidades. Os alunos também exigiam trigger warnings quando estivessem em causa textos ou palestras sobre temas sensíveis – racismo, violência doméstica, homofobia etc.

Como lembra Mick Hume, a principal revolução da nossa era é a elevação do sentimento a argumento de autoridade

Como é evidente, essas listas foram se expandindo, porque, parafraseando H. L. Mencken, há sempre alguém, algures, que se sente infeliz por uma razão qualquer. E como discriminar entre infelicidades? Como pesar objetivamente os diferentes graus de prejuízo causado por uma palavra ou comentário?

Impossível. Como lembra Mick Hume, essa é a principal revolução da nossa era: a elevação do sentimento a argumento de autoridade. Se eu me sinto desconfortável com uma palavra ou um comentário, esse desconforto basta para transformar o que foi dito num crime horrendo e sem perdão. Como, logicamente, todos podemos nos sentir desconfortáveis por mil palavras, a única arena pública concebível para termos uma segurança física e psíquica à prova de bala seria feita de silêncio. Um cemitério, em suma, desde que ninguém se sentisse desconfortável com o ambiente próprio das sepulturas.

Nesse mundo, Romeu e Julieta jamais se matariam. As suas famílias jamais se odiariam. E os jovens amantes jamais se apaixonariam: existe sempre a possibilidade de uma paixão fogosa incomodar os celibatários ressentidos ou os noivos que foram abandonados no altar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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