C. S. Lewis.| Foto: Wikimedia Commons
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Porca miséria! Estarei em São Paulo na primeira semana de abril. Mas já não vou a tempo de assistir à peça "A Última Sessão de Freud", que deixa os palcos a 27 de março.

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É pena. Conheço o texto, notável, de Mark St. Germain, bem como o livro, também notável, de Armand Nicholi, "The Question of God", que inspirou o dramaturgo.

Mas a peça propriamente dita sempre escapou à minha agenda: quando o pano sobe, eu chego sempre tarde demais. Não dá para esticar um pouco, gente?

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É a história do encontro entre Sigmund Freud e C.S. Lewis que, provavelmente, nunca aconteceu. Digo provavelmente porque, segundo Armand Nicholi, Freud recebeu a visita de um "jovem professor de Oxford" em 1939. Teria sido C.S. Lewis?

Essa hipótese animou Mark St. Germain e é fácil perceber por que: se Freud era o supremo não crente, C.S. Lewis era o supremo crente, depois de ter passado a primeira metade da vida na mesma posição ateia de Freud.

É quase irresistível imaginar uma conversa entre os dois sobre o tema mais arcano de todos: Deus.

Para Freud, uma inexistência, claro. Que apenas expressava a nossa incapacidade de enfrentar a vida sem figuras paternas tomadas de empréstimo à infância, altura em que desenvolvemos com o nosso pai uma atitude de rivalidade e admiração.

Essa ambiguidade é transferida para Deus, esse ser imaginário que tememos e amamos em partes iguais, por imperiosa necessidade de proteção.

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Para C.S. Lewis, o argumentário racional de Freud não escapa a uma análise igualmente racional. A nossa ambivalência em relação ao pai não deveria nos jogar imediatamente para os braços de Deus.

Poderia até nos afastar desse ser, sobretudo quando a parte dolorosa dessa relação ambígua é mais pronunciada. Quem deseja mimetizar uma infância infeliz?

Não sei o que responderia Freud à observação. Mas sei, como se lê na peça, que a inexistência de Deus não se limita às nossas necessidades psicológicas mais primevas. O clássico problema do mal não escapou a Freud: como justificar a existência de um Deus bom e onipotente quando o sofrimento que existe no mundo desautoriza tal fantasia?

C.S. Lewis oferece a resposta clássica também: são os homens, dotados de livre escolha, que trazem esse sofrimento.

Não somos máquinas programadas por um criador tirânico. Somos seres humanos capazes de decidir o caminho que tomamos. E, por vezes, esse caminho nos afasta do bem e da virtude.

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E quando esse sofrimento não é causado pelos homens, mas pelos insondáveis mistérios da natureza? Terremotos, doenças, pestes. Onde está Deus perante esse desfile macabro? Que tem ele a dizer?

Não somos máquinas programadas por um criador tirânico. Somos seres humanos capazes de decidir o caminho que tomamos. E, por vezes, esse caminho nos afasta do bem e da virtude

Como afirmava Freud, se Deus existisse, seria ele a ter que se justificar perante os homens, e não ao contrário.

C.S. Lewis rebate: não podemos confundir o amor de Deus com noções vulgares de gentileza ou bondade. Talvez o amor de Deus inclua a inevitabilidade do sofrimento para que as suas criaturas se tornem melhores.

É uma hipótese intolerável para Freud, que sofria penosamente com um câncer na boca. Só por piada o sofrimento nos aproxima de Deus quando todo o nosso corpo, toda a nossa alma, conspira na dor para O repudiar.

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Normalmente, discussões entre crentes e não crentes são a coisa mais absurda do mundo. É como escutar um cego a falar com um surdo. E o surdo a tentar lhe mostrar as cores de uma paleta.

O resultado desses encontros resvala quase sempre para a gritaria. O cego acusa o surdo de não escutar. O surdo acusa o cego de não enxergar.

Por outras palavras: em mentes vulgares, a fé e a ciência se convertem em puro proselitismo, a arma preferida dos fanáticos.

Que a fé e a ciência sejam duas formas de habitar o mundo, com linguagens e sensibilidades distintas, é algo que não passa pela cabeça dos zelotes.

Se Freud e C.S. Lewis alguma vez se encontraram, imagino a conversa como Mark St. Germain a imaginou na sua peça: um duelo irónico e erudito entre dois homens que, diferenças religiosas à parte, amavam a mesma obra (o "Paraíso Perdido" de John Milton); conheciam o sofrimento de perto (ambos eram sobreviventes de lutos dilacerantes); e que procuravam responder às mesmas perguntas –sobre Deus, a felicidade, o sentido da vida e a inescapável realidade da morte– com inteligência e humanidade.

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Tão longe e, no entanto, tão perto.