Se as mudanças climáticas são uma ameaça real e existencial para a humanidade, você seria favorável a formas autoritárias de governo para tentar resolver o problema? Ou, pelo contrário, a democracia e o respeito pelos direitos básicos são mais importantes, mesmo que esses valores não tenham a sensibilidade suficiente para os desafios do clima? Duas perguntas, mil polêmicas à vista. A proeza pertence ao cientista político Ross Mittiga, que teve a ousadia de escrever um ensaio acadêmico sobre o assunto (“Political Legitimacy, Authoritarianism, and Climate Change”) para a prestigiada American Political Science Review.
Eis o ponto de partida: nas questões sobre a legitimidade dos governos, a nossa cultura demoliberal afastou-se dos “realistas” (como Thomas Hobbes, por exemplo) e se aproximou dos “moralistas”. Os primeiros defendem que um poder absoluto é justificado para garantir a segurança dos indivíduos. Os segundos contrapõem: sem consentimento, sem democracia, sem direitos individuais, não há legitimidade para ninguém.
Segundo Ross Mittiga, há momentos em que a segurança pode ser mais importante do que autonomia individual
Em tempos normais, essas duas posições não precisam ser antagônicas. A função dos governos é garantir a segurança dos cidadãos e, adicionalmente, proteger também um conjunto de valores e direitos democráticos. A tensão só ocorre em situações de exceção – e não é preciso imaginar filmes apocalíticos para perceber isso. Basta lembrar a forma como governos democráticos reagiram à pandemia, limitando severamente certos direitos individuais (como o direito à livre circulação). Fizeram bem? Fizeram mal?
Essa não é a discussão que interessa aqui. A pandemia é importante para ilustrar o ponto de Ross Mittiga: há momentos em que a segurança pode ser mais importante do que autonomia individual. Ou, para usar a terminologia do autor, a “legitimidade fundacional” (que depende da capacidade do Estado de garantir a segurança de todos) pode suplantar a “legitimidade contingente” (que, nas democracias liberais do Ocidente, emana de certos direitos individuais). O primeiro tipo de legitimidade garante a vida; o segundo, a vida boa Logicamente, não é possível que exista vida boa sem existir vida primeiro. Perante ameaças existenciais de larga escala, é preciso defender a vida, ou a possibilidade de existir vida. O resto virá depois.
Em teoria, aceito o argumento de Mittiga: são incontáveis os exemplos históricos em que uma sociedade, ameaçada por um poder inimigo, teve de suspender certos direitos e liberdades para se defender. O ponto, porém, não está na necessidade circunstancial de transformar uma sociedade civil numa sociedade guerreira. Está em saber se essa transformação ocorre dentro ou fora das instituições democráticas de um país. E, nesse quesito, Thomas Hobbes é um bom autor.
Para Ross Mittiga, Hobbes é o supremo absolutista, disposto a esmagar os direitos individuais em nome da paz e da segurança. Acontece que o Leviatã não surge por milagre. Ele é consentido pelos indivíduos que desejam escapar ao pesadelo do estado da natureza. Isso tem implicações na discussão sobre os estados de exceção: eles só podem ser aprovados pelas instituições demoliberais competentes, como os parlamentos, eleitos pelo poder soberano popular. Não basta o voluntarismo, ou a impaciência, do líder do momento. Ross Mittiga sabe disso e apenas espera que os Estados democráticos sejam capazes de enfrentar os desafios do clima sem ser preciso recorrer a soluções autoritárias.
Empiricamente, ainda está por provar que as autocracias são mais eficazes do que as democracias na luta contra as alterações climáticas
Mas há quem seja mais explícito na sua paixão por “ditaduras ecológicas”: se o povo não acorda para o problema, preferindo continuar com seus hábitos nocivos para o planeta (comendo carne, usando combustíveis fósseis etc.), não estará na altura de prescindir desse povo ignaro e optar por um tirano bondoso?
Não, não está: empiricamente, ainda está por provar que as autocracias são mais eficazes do que as democracias na luta contra as alterações climáticas. Aliás, é até possível presumir o oposto: sociedades democráticas e pluralistas, nas quais a discussão científica é livre e os avanços tecnológicos são constantes, são talvez a melhor esperança para tanta desesperança.
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