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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Três filmes

Kristen Stewart no papel da princesa Diana em "Spencer". (Foto: Divulgação)

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1. Gostei do filme Spencer, embora não pelos motivos que o diretor Pablo Larraín talvez esperasse. Sim, lá encontramos a família real britânica, no seu bunker gélido de Sandringham, festejando o Natal com a alegria das múmias. E Diana, a “princesa do povo”, oprimida pela família, sobretudo por Charles, e incapaz de suportar os rigores militares da monarquia. Ela, Diana, sente-se como Ana Bolena, a donzela que Henrique VIII mandou decapitar para que pudesse se casar com Jane Seymour.

Não é preciso um diploma em História, nem sequer um Q.I. acima da média, para perceber a metáfora: Diana é Ana; Charles é Henrique VIII; Camilla Parker Bowles é Jane Seymour. Quem será Ana de Cleves, que sucedeu Jane? Não sabemos. Mas eu, se fosse Camilla Parker Bowles, estava atenta e comprava desde já uma arma.

Contado assim, o filme soa como uma caricatura. E esse é o principal risco que Pablo Larraín corre, ao repetir a narrativa maniqueísta dos tabloides britânicos: Diana era boa, a família real era má. Mas é possível olhar para Spencer como o retrato psicológico de uma mulher em desagregação, incapaz de distinguir a realidade da fantasia. A aia aconselha Diana a não ver conspirações em todo lado. Mas Diana faz lembrar Jack Torrence, personagem de Jack Nicholson em O Iluminado, deambulando pelos corredores imponentes do edifício, falando com os seus fantasmas e encerrada na sua loucura.

Spencer corre o risco de ser uma caricatura dos tabloides britânicos

Spencer vale como filme de terror, não como “uma fábula inspirada numa tragédia real”, como se lê nos créditos iniciais. Até porque eu não sei, e desconfio que ninguém sabe, o que se passou realmente entre as quatro paredes de um casamento infeliz. Aliás, alguma vez sabemos?

2. A história é cruel para os grandes homens. Quando pensamos na Segunda Guerra, a figura imponente de Churchill toma conta da tela, apesar dos fracassos que o velho Winston cometeu antes de 1939. Neville Chamberlain, seu antecessor, é pintado com outras cores: as cores da covardia, da ingenuidade e até da traição.

Nunca comprei essa versão infantil da história. Primeiro, porque Chamberlain foi um grande premiê britânico – o seu reformismo trabalhista e social melhorou as condições de vida das classes trabalhadoras. E, depois, porque tentou evitar uma nova guerra, talvez por ter na memória as consequências da anterior.

Foi ingênuo depois da anexação da Áustria por Hitler em 1938? Não foi: Chamberlain suspeitava que um novo confronto talvez fosse inevitável. Mas Chamberlain também sabia que uma Inglaterra em crise – depois da Grande Depressão – e militarmente despreparada não podia avançar contra a Alemanha nazista. Era preciso ganhar tempo e esgotar todas as opções diplomáticas, mesmo as mais otimistas.

Além disso, convém lembrar uma verdade inconveniente: para a elite conservadora da década de 1930, o principal problema não era Hitler; era Stálin. Hitler, na melhor das hipóteses, seria um contraponto necessário ao bolchevismo, mesmo com suas políticas brutais e boçais. Eis um caso em que o inimigo do meu inimigo pode não ser meu amigo.

Felizmente, o filme Munique – No Limite da Guerra (na Netflix) procura equilibrar a balança, mostrando a decência e a persistência de Chamberlain em conservar a paz. Jeremy Irons, no papel de Chamberlain, é um caso de clonagem arrepiante.

3. Charles Baudelaire já tinha avisado: o dandismo é uma instituição antiga e se encontra nas latitudes mais improváveis. Chateaubriand, conta Baudelaire, encontrou dândis nas florestas e nos lagos do Novo Mundo.

Chamberlain foi um grande premiê britânico – o seu reformismo trabalhista e social melhorou as condições de vida das classes trabalhadoras. E tentou evitar uma nova guerra, talvez por ter na memória as consequências da anterior

E eu, com a devida vênia ao poeta, encontrei um nas ruas imundas de Cingapura quando conheci Jack Flowers. A elegância do gesto, a impassibilidade da expressão, a melancolia disciplinada – e, claro, um certo cuidado com a toalete. Quando o vemos, ele aparece com uma camisa florida, talvez em homenagem ao nome (Flowers, “flores”). Mas depois, quando uma gangue rival decide sequestrá-lo para tatuar profanidades nos seus braços, Jack não vacila; limita-se apenas a corrigir a aparência: transforma os insultos em flores e passa a envergar camisas lisas, sem qualquer padrão.

É que Jack, apesar de ser um proxeneta, é sobretudo um cavalheiro. E o seu dandismo, como ensinava Baudelaire, é a expressão de uma certa nobreza de caráter, mesmo nas circunstâncias mais vis e perante as tentações mais poderosas. Se o dândi, como escrevia Baudelaire, é “o último rasgo de heroísmo no meio da decadência”, Jack Flowers é o seu rosto.

Na morte de Peter Bogdanovich, os obituários lembraram os filmes incontornáveis, como A Última Sessão de Cinema ou Texasville. Mas seria imperdoável esquecer Saint Jack (1979) e um Ben Gazzara que ficará para a eternidade.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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