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João Pereira Coutinho

João Pereira Coutinho

A arte da fuga

Republicanos dividem-se quanto às alegações de fraude eleitoral por parte de Trump
O presidente norte-americano, Donald Trump. (Foto: AFP)

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Agora que Donald Trump parece disposto a fechar um capítulo (“A Presidência”) para abrir outro (“A Vingança”), o auditório que o detesta continua a olhar para a criatura sem a conseguir explicar. Um populista, um ditador, um fascista. Ou, em linguagem psiquiátrica, um narcisista, um esquizoide, um psicopata. Curiosamente, ou talvez não, o mundo olha para Trump como normalmente olhamos para os melhores vilões do cinema: com ansiedade e repulsa. Quando será que o prendem? Quando será que o matam?

A diferença, a grande diferença entre o cinema e a vida real, é que a “suspensão da descrença” é temporária quando vemos um filme. No caso de Trump, essa suspensão é permanente. De tal forma que tomamos a ficção por realidade. Um erro, avisa Bruno Maçães, autor do mais original e estimulante ensaio que li esse ano sobre a América contemporânea: History Has Begun: The Birth of a New America (Oxford University Press, 248 páginas). Entender Trump implica perceber que aquilo já é outra coisa. Mas que coisa?

Para responder à pergunta, Maçães começa pelo princípio. Ou, melhor dizendo, pelo falso princípio da república americana: quando os “pais fundadores” disseram adeus à Europa, esse adeus foi limitado. Os alicerces dos Estados Unidos eram ainda reconhecidamente europeus, iluministas, liberais. Mas essa casca europeia foi sendo rachada e abandonada, não apenas pela dinâmica interna da nova nação e das novas gentes que a habitavam e recriavam, mas pelas trágicas contingências da história.

O mundo olha para Trump como normalmente olhamos para os melhores vilões do cinema: com ansiedade e repulsa

No século 20, a grande civilização europeia suicidava-se em Verdun e em Auschwitz. Os Estados Unidos, que eram já a potência econômica dominante em inícios da centúria, tornaram-se a superpotência. Uma superpotência contestada pela alternativa comunista até 1989 e incontestada depois da dissolução da União Soviética – pelo menos, até à emergência da China.

Pois bem: se a Europa, carregada de passado, procurou reconstruir-se no pós-Segunda Guerra sobre princípios mais sólidos (a União Europeia é o arranjo arquitetônico que saiu das ruínas), os Estados Unidos, na interpretação de Bruno Maçães, optaram por um outro caminho: não o de se conformarem com a realidade, mas o de escaparem à realidade, criando novas realidades. Dito de outra forma: para que viver nos limites estreitos do roteiro liberal quando é possível escrever outros roteiros e até transformar a vida num romance de infinitas possibilidades?

Essa evasão existencial não poupou a política e os seus líderes. Pelo contrário: como afirmava Ronald Reagan, citado no livro, era inconcebível que alguém chegasse à Casa Branca sem ter sido ator primeiro. Escusado será dizer que, depois de Reagan, atores não faltaram: uns melhores (Obama), outros piores (Bill Clinton) – até chegarmos ao supremo entertainer: o Donald, claro.

E, com ele, vieram as cadências próprias de uma novela, com a candidatura presidencial que ninguém levou a sério; a vitória sísmica; o reinado de trevas; o impeachment que prometia derrubar o monstro; a sobrevivência dele; um novo confronto épico com o “vírus chinês” que ele desvalorizava; a recuperação heroica mesmo a tempo da eleição; e, finalmente, a derrota, depois de um longo suspense. Ou, como nas melhores séries, ele pode regressar para uma continuação?

O auditório reagiu a Trump com os instrumentos tradicionais da política tradicional. Daí a terminologia – populista, fascista, doente mental etc. – com que o velho mundo pretendia explicar o novo. Para Bruno Maçães, nem tudo é mau nesse novo mundo. Nas relações internacionais, por exemplo, é de saudar o abandono de um certo “imperialismo liberal” e a preferência por uma ordem pluralista, em que o mais importante não é fazer do mundo uma cópia da América, mas um lugar seguro para a América.

Nesses quatro anos, apesar do som e da fúria, tivemos sorte. Podemos não ter sorte da próxima vez

Pessoalmente, não estou tão convencido sobre as virtudes do “princípio da irrealidade”, onde “tudo é possível, mas nada é verdadeiro”. Nesses quatro anos, apesar do som e da fúria, tivemos sorte. Podemos não ter sorte da próxima vez, sobretudo se a irrealidade transbordar de forma trágica para o banal cotidiano onde vivemos. Como diria Woody Allen, podemos não gostar muito da realidade, mas ela ainda é o único lugar onde podemos comer um bom filé.

Seja como for, Bruno Maçães oferece a mais inventiva e erudita explicação para o espetáculo que esteve em cena desde 2016. E que continuará, com Trump e até com Joe Biden. Aliás, por falar em Biden, onde é que eu já vi esse filme de um velho pistoleiro aposentado que é obrigado a regressar à cidade para afastar o xerife corrupto? Vou perguntar a Clint Eastwood.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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