Assim vai o mundo: algumas universidades britânicas estão dispostas a permitir erros ortográficos, gramaticais e de pontuação aos alunos. A ideia é promover uma “escrita inclusiva”, o que significa que grupos marginalizados, incapazes de escrever uma frase com sujeito, predicado e complemento direto, não devem ser penalizados por isso.
A Universidade de Hull, outrora casa de Philip Larkin, é explícita: o que se entende por “escrita correta” é, na verdade, um produto da Europa do norte e da cultura branca e elitista. Preservando-se um mínimo de inteligibilidade (até quando? E, já agora, não será isso também elitista?), o que conta é a forma autêntica como o aluno se expressa.
Obcecadas por “justiça social”, as humanidades escolheram caminho de ruína
Quando li a notícia, confirmei uma vez mais o caminho de ruína que as humanidades escolheram há muito. Digo humanidades e não ciências naturais e exatas porque essas últimas não podem brincar – peço desculpa, “desconstruir” noções arcaicas de verdade. Sim, de vez em quando alguém fala em “matemática inclusiva” e outras fantasias do gênero. Mas, no mundo real, a “matemática inclusiva” levaria à queda de pontes; a “física inclusiva” levaria à queda de aviões; e se o leitor, no bloco operatório, soubesse que o seu cirurgião era versado em “anatomia inclusiva”, o melhor era tentar fugir dali antes que a anestesia começasse a fazer efeito. Isso, claro, se tivesse a sorte de ter anestesia – uma invenção elitista e branca, que pode ser facilmente substituída por dois búzios sobre os olhos.
Mas a notícia também mostra outra coisa: o longo caminho que o pós-modernismo fez desde a década de 1960 até nossos dias. Um livro recente de Helen Pluckrose e James Lindsay, intitulado Cynical Theories, ou “teorias cínicas”, ajuda a compreender essa aventura.
No início, a proposta pós-moderna era uma confissão de desencanto, argumentam os autores. As metanarrativas – científicas, religiosas, ideológicas – tinham falhado com estrondo no terrível século 20. Donde, o que restava? Não, com certeza, aquele ceticismo saudável e antiutópico, que toma todo o conhecimento por provisório e constitui a base do progresso. O ceticismo tornou-se radical e cínico. A verdade não era difícil e provisória; era impossível e relativa. E, adicionalmente, dependia geneticamente de um sistema de poder e hierarquia onde só os poderosos têm vez.
Confesso que sempre li com humor essa literatura conspiratória e ficcional. Que, logicamente, se refuta a ela própria – se tudo se abre à tal desconstrução, não há nenhum motivo para deixar a proposta pós-moderna a salvo.
O problema, dizem Pluckrose e Lindsay, é que o novo pós-modernismo entendeu esse calcanhar de Aquiles e, na virada do milênio, agiu em conformidade. Não bastava só a atitude lúdica e essencialmente descritiva da primeira onda pós-moderna. Era preciso ir mais longe, corrigindo na prática o que havia sido denunciado pela teoria. A indústria da “justiça social”, com suas mil ramificações acadêmicas, nasceu desse imperativo: reinterpretar e refazer o mundo através da lente do ativismo. Por outro lado, essa mesma indústria blindou-se à crítica, desqualificando moralmente os incréus – racistas, machistas, homofóbicos et cetera – ou até intelectualmente – ignorantes sobre os textos canônicos etc.
No fundo, nada de novo. Apenas um retorno ao período medieval, em que a discórdia era tratada como heresia. A Terra girava em torno do Sol? Quem afirmava tal coisa era diabólico e, além disso, não conhecia a Bíblia. Fim de papo – e fogueira com ele. Igual tratamento deve ser ministrado a quem duvida da “fragilidade branca”, da “opressão epistêmica” ou da “interseccionalidade”.
No mundo real, a “matemática inclusiva” levaria à queda de pontes; a “física inclusiva” levaria à queda de aviões; e se o leitor, no bloco operatório, soubesse que o seu cirurgião era versado em “anatomia inclusiva”, o melhor era tentar fugir
Porque a Verdade, a única Verdade tolerável, é que tudo se resume às assimetrias de poder. E, se assim é, nada justifica que se aceite como único conhecimento válido o que é produzido pela cultura dominante. Os marginalizados também têm direito às suas epistemologias e hermenêuticas. No limite, esse pluralismo radical inclui até o direito de não se ser compreendido (“privacidade hermenêutica”).
Eis o futuro: por enquanto, aceitam-se erros ortográficos, gramaticais; a prazo, o aluno poderá comparecer ao exame e, em nome da “privacidade hermenêutica”, ter nota máxima pelo silêncio ou pelo delírio.
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