Já não tenho paciência para gente diversa que, dia e noite, garante por aí que a nossa vida nunca mais será a mesma. Como sabem? Não sabem. Mas gostam de posar de profetas, mesmo que o novo corona seja a prova empírica de que as profecias não resistem à contingência.
Eles, que veem mais longe, não se limitam a explicar como será o mundo em sentido geopolítico. Descem aos detalhes. Como serão nossas rotinas? Nossas profissões? Nossas relações? Nossa higiene diária?
Os restaurantes, então, são o palco principal dos seus delírios. Tenho lido bastante a respeito. Nunca mais iremos a um restaurante da mesma forma, avisam. Sério? Nunca mais? Sério. Haverá mesas individuais, protegidas por um vidro, como o papamóvel, para evitar atentados sanitários. É comer e andar, rapidinho, como se fôssemos animais.
Um casal sueco, por exemplo, já vive nesse futuro: leio na imprensa que abriram um restaurante que só serve uma pessoa de cada vez. E sem empregados. O sujeito faz o pedido e uma máquina qualquer despeja a ração.
O sujeito come, paga o que quiser (Suécia, certo?) e dá lugar ao próximo. Faz lembrar aqueles filmes de guerra em que os soldados visitam a prostituta do regimento para aliviarem suas carências. Em fila. Nada tenho contra almoçar ou jantar sozinho. Pratico o desporto muitas vezes.
Restrições são restrições, não "formas de vida" que devemos abraçar para todo o sempre
Mais: um dos meus restaurantes favoritos, quando estou fora de Portugal, é o velhinho Rules, em Londres, que se especializou em refeições celibatárias. Uma pessoa chega, escolhe a mesa e até pode colocar o jornal numa espécie de estante de madeira, como se fosse uma pauta de música, para ir lendo enquanto devora o magnífico filé.
De igual forma, entendo que, temporariamente, haja restrições. Temporariamente, repito, enquanto o bicho andar por aí com ferocidade.
Mas restrições são restrições, não "formas de vida" que devemos abraçar para todo o sempre. Até porque a ideia de que o restaurante se confunde com uma manjedoura é uma regressão histórica imperdoável.
O restaurante moderno, com seu chef e seus empregados, com cardápios e toalhas de pano, aquele lugar aonde você vai para matar a fome (do corpo e do espírito), é uma das poucas consequências felizes da Revolução Francesa. Isso e a cabeça de Maximilien de Robespierre, é claro.
O crítico gastronômico William Sitwell tem um livro a respeito (intitulado, tão só, "The Restaurant") em que explica essa dádiva acidental: com a destruição da aristocracia francesa, milhares de chefs e empregados ficaram sem trabalho.
Alguns, como Gabriel-Charles Doyen, chef privativo de Marie Antoinette, perderam mais que o trabalho: a cabeça, para ser específico, sobretudo quando exigiram dos jacobinos novas colocações de emprego.
Outros democratizaram a experiência gastronômica dos velhos palácios. Como? Abrindo restaurantes, ou seja, lugares de "restauro" onde, por uma soma qualquer, era possível provar certos pratos (e certas adegas) que anteriormente estavam reservados à fidalguia.
Transformar os restaurantes em meros lugares de pasto, utilitários e assépticos, é um atentado a esse patrimônio. Porque os restaurantes não servem apenas para mastigar.
Servem para conversar, namorar, conspirar, pensar, rir, chorar, escrever, ler, contemplar, dormitar –e pedir só mais uma fatia de bolo, ou um café, ou ambos, tudo isso antes daquele chá escocês que antecede as grandes confidências.
Além disso, o que seria da história da cultura, a começar pela história do cinema, sem esses locais de vagabundagem do palato?
Foi num restaurante que Michael Corleone vingou o seu pai Vito. Foi num restaurante que Samuel L. Jackson abandonou o caminho do crime e se entregou a uma vida de contemplação e errância. E foi num restaurante, convém lembrar, que Meg Ryan mostrou como os homens podem ser otários em matéria de orgasmos femininos.
Nunca mais fui o mesmo depois dessa cena – e passei anos a sujeitar as minhas parcas conquistas sentimentais a um interrogatório pós-coital que faria a inveja do KGB.
Estou disposto ao sacrifício: comer em casa, sim; usar máscara, sim; não cumprimentar os amigos com toques ou beijos, tudo bem. Mas, repetindo as sábias palavras da rainha Elizabeth 2ª, voltaremos a nos encontrar. E, assim que o bicho estiver nocauteado, serei o primeiro a me instalar na mesa, a rasgar a máscara, a abraçar os ossos dos camaradas e a desprezar, como merecem, esses canibais da civilização.
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