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Há tempos, um leitor comentou, melhor dizendo, perguntou, se era ou não permitido no Brasil xingar um ministro do Supremo Tribunal Federal. A pergunta, convenhamos, é muito pertinente nos dias de hoje, quando cada vez mais poderosos – políticos ou não – usam todas as armas disponíveis para tentar calar qualquer voz que expresse algo que considerem ofensivo, mesmo quando não o é, como no casos das críticas.
Antes de mais nada, que fique claro: obviamente não podemos sair xingando a torto e a direito, sejam ministros do Supremo, políticos ou qualquer pessoa. Além de ser um atentado contra a boa educação, civilidade e autocontrole, agredir verbalmente uma pessoa, insultar, ofender é um crime e quem o faz pode ser punido por isso.
É claro que há pessoas públicas – muitas delas, aliás – que testam nossa paciência e nos tiram do sério. Quem nunca teve ganas de mandar algum político para certos lugares indizíveis ou associá-lo a uma origem materna questionável que atire a primeira pedra. Ainda assim, não podemos sair por aí soltando cobras e lagartos contra eles.
Mas a questão real nesse caso, muito mais séria, e que provavelmente motivou o questionamento do leitor, é que “xingar”, em nenhum momento, se confunde com “criticar”, mesmo que de forma pesada, um político, um ministro ou outra figura pública. Só que é exatamente isso o que vemos ser paulatinamente construído através dos discursos e medidas tomadas por políticos e outras autoridades.
Cada vez mais, tenta-se vender a ideia de que certos políticos, instituições ou mesmo ideias são incriticáveis e que qualquer questionamento contra eles se equipara a uma ofensa ou crime, passível de ser punida pela Justiça. E a coisa vai mais além: há tentativas de se elevar tais críticas não só ao nível de ofensa ou injúria pessoal, mas também de crimes contra o próprio Estado de Direito.
No final de março deste ano, um cidadão brasileiro encontrou o ministro do STF Gilmar Mendes no aeroporto de Lisboa. De acordo com o próprio ministro, o homem teria dito que ele [Mendes] e o STF “são uma vergonha para o Brasil e para todo o povo de bem”. “Só isso, tá. Infelizmente, um país lindo como o nosso está sendo destruído por pessoas como você.” Que o leitor avalie se isso poderia ou não caracterizar um xingamento.
Mas para o próprio Gilmar Mendes, que, obviamente, acionou a Polícia Federal, o caso foi muito além. Segundo ofício do próprio Mendes, “ao agir dessa forma, o imputado almejou intimidar Ministro do Tribunal, para desestabilizar o funcionamento da instituição. Não é necessário grande esforço para demonstrar que a iniciativa se encaixa em um movimento articulado e coordenado de ataques aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, organizado por extremistas e detratores da democracia”. Uau!
Difícil ver nas palavras do cidadão algo que possa desestabilizar o funcionamento do STF – a corte, aliás, pouco parece se importar com o que a população pensa a seu respeito – ou com um movimento articulado por “extremistas e detratores da democracia”. Ainda assim, o mero fato de um ministro do Supremo achar isso evidencia o estado de paranoia contra críticas que atinge muitos poderosos brasileiros.
Querer colocar na cadeia – ou pelo menos ameaçar disso – quem critica quem se considera incriticável virou obsessão. Recentemente, o Congresso manteve um veto a trechos da Lei 14.197, sobre os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Um dos trechos vetados – e que a bancada aliada do governo Lula queria derrubar – era o que criava um crime de “fake news eleitoral”, e que previa pena de prisão de até cinco anos para quem fizesse “campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos e que sejam capazes de comprometer a higidez do processo eleitoral”.
Ora, sabemos o quão problemático tem sido a definição do que são, de fato, fake news, e levando-se em conta a pouca disposição do Judiciário brasileiro em aceitar qualquer crítica ao processo eleitoral brasileiro, a derrubada do veto significaria a criminalização de vez de qualquer questionamento ao processo eleitoral em vigor no Brasil. Eleições, assim como qualquer outro processo dentro de uma democracia, estão sujeitas a críticas. Quando infundadas, tais críticas se desmontam com informação e transparência. Mas no caso das críticas legítimas, elas podem (e devem) ser usadas para aprimorar o próprio processo. Querer botar na cadeia quem questiona sistemas eleitorais é coisa de ditadura.
Outro exemplo de como as coisas estão degringolando foi a paranoia contra as críticas sobre a atuação do governo federal no Rio Grande do Sul – que ainda está em curso e vai continuar por um bom tempo. Diante de uma situação de calamidade, o Estado quer se passar por herói – e qualquer afirmação questionando tal papel é tratada como crime.
Até um acordo entre o governo e representantes de redes sociais foi firmado para evitar a proliferação de críticas à atuação do governo. Ora, nada do que o Estado faça em casos assim será suficiente e, mesmo que se tratasse de uma atuação irretocável (o que não é), o governo apenas estaria cumprindo com sua obrigação. Querer ser elogiado o tempo todo ou calar quem não faz elogio é, de novo, coisa de ditadura.
Poderia esticar essa lista ao infinito: (maus) exemplos de gente querendo ficar imune a críticas é o que não falta. E eles vão fazer de tudo para tentar concretizar esse desejo. Será que conseguiremos impedi-los?