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Motociclistas percorreram uma das principais avenidas de Caracas, numa manifestação contra eleição presidencial cheia de indícios de fraude
Motociclistas percorreram uma das principais avenidas de Caracas, numa manifestação contra eleição presidencial cheia de indícios de fraude| Foto: EFE/Henry Chirinos

Era uma vez um país que se dizia democrático – tinha até “democracia demais”, como defendiam alguns. Seu líder democrático supremo, milagrosamente eleito eleição após eleição pela mão do deus-Estado, dizia respeitar piamente a constituição nacional, escrita por ele mesmo e seus apoiadores, e querer apenas a defesa da “democracia”.

Nessa luta pela “democracia” e respeito pela soberana vontade popular, o governo se empenhou ao máximo. Para ajudar os eleitores a votar bem e certo, o líder democrático e seu governo, com a ajuda das fortes instituições do país, corretamente alinhadas e emparelhadas ao ideal democrático, eliminaram a nefasta influência dos meios de comunicação privados, e da liberdade de imprensa, mantendo apenas as fontes oficiais do governo.

Quando se aproximou a época de mais uma eleição, o líder democrático teve ainda mais zelo pela defesa da “democracia”. Era preciso proteger o povo de votar errado e se desviar do ideal democrático

Jornais e TVs devem trabalhar pela “democracia”, dizia o líder democrático, então só podem divulgar a verdade democrática – aquela que é dita pelo líder supremo e membros do governo. Qualquer questionamento ao líder e seu governo, aliás, era um ataque à própria “democracia” e, por isso, devia ser eliminado imediatamente.

O Judiciário do país, comandado pela esposa do líder democrático supremo, também era um grande aliado na manutenção da “democracia”. Alertados pelo governo, que periodicamente listava os opositores, os juízes do país passaram a perseguir todos aqueles que ameaçavam a “democracia”, ou seja, criticavam ou questionavam o líder democrático.

Quando se aproximou a época de mais uma eleição, o líder democrático teve ainda mais zelo pela defesa da “democracia”. Era preciso proteger o povo de votar errado e se desviar do ideal democrático. Para evitar ataques ao ideal democrático, os opositores – todos fascistas antidemocráticos, logicamente – precisavam ser eliminados. Boa parte deles foi colocada na cadeia ou impedida de se candidatar, pois eram “fascistas da extrema-direita global”, gente que não tem direito de se candidatar numa verdadeira “democracia”.

Após uma seleção, só foi permitida a candidatura daqueles que não representavam perigo para a “democracia”: velhos aliados do líder democrático e um nome desconhecido da população, que nunca conseguiria desviar os eleitores do rumo democrático de eleger sempre o mesmo líder democrático.

A campanha eleitoral foi justa e equilibrada. Dono das TVs, rádios e jornais do país, o governo conseguiu levar sua mensagem democrática a todos os rincões do país. Durante o dia e a noite, só se ouvia a voz do líder democrático. Com o ardor dos verdadeiros democratas, o líder e candidato à reeleição eterna lembrava o quão arriscado seria votar na oposição – um “banho de sangue” seria o mínimo a se esperar.

E, para minimizar os riscos de que os fascistas antidemocráticos ainda assim enganassem a população com suas falas sobre liberdade, justiça e direitos individuais, o governo periodicamente sumia com algum membro da campanha opositora – alguns reapareciam tempos depois, outros não.

Os votos na oposição, obviamente, não foram computados. Eram antidemocráticos, votos errados, contra a “democracia”

As eleições, como sempre, foram limpas e democráticas e soberanas. Apoiadores do líder democrático armados dispararam tiros perto dos locais de votação, para gentilmente lembrar os eleitores em quem votar para votar bem. As cédulas de votação também lembravam como votar bem, trazendo treze vezes a imagem do líder democrático.

Para evitar tumultos ou fraudes, apenas membros do governo acompanharam a votação, feita em tempo recorde – nem foi preciso divulgar os resultados das urnas de votação diante de uma vitória tão esmagadora da “democracia”. Os votos na oposição, obviamente, não foram computados. Eram antidemocráticos, votos errados, contra a “democracia”. O líder reeleito foi diplomado no dia seguinte, para evitar que os antidemocráticos reclamassem – inimigos da “democracia” sempre questionam a legitimidade das eleições nos poucos países realmente democráticos que existem.

Houve protestos de outros países – mas, como bem lembrou o líder reeleito, eram apenas países tomados pela sórdida ideologia do fascismo internacional, unidos para tentar minar a verdadeira “democracia” que impera em Cuba, Rússia, China e outros bastiões democráticos. Também houve protestos nas ruas do país – mais fascistas que tentavam minar a legitimidade das eleições limpas e democráticas.

Foi preciso lançar gás lacrimogêneo contra a população, foi preciso matar homens e mulheres que pediam respeito à vontade dos eleitores e fim da opressão, foi preciso encher ainda mais as cadeias com opositores – mas tudo vale em nome da verdadeira “democracia”.

Foi assim. E tem gente que defende que essa é uma história bonita de se contar.

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