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Virou notícia: na Nicarágua, o ditador Daniel Ortega encheu as ruas de policiais para impedir as tradicionais procissões de Páscoa. Fiéis que chegavam às igrejas eram fotografados e ameaçados de prisão, num ato claro de intimidação. Sabe-se que a Nicarágua de Ortega tem atacado sistematicamente a Igreja Católica no país, confiscando bens, prendendo e expulsando padres e religiosos, entre outras aberrações. O motivo principal seria o de que a Igreja teria ajudado manifestantes perseguidos pelo regime sandinista durante os protestos de 2018. Além disso, religiosos como o bispo Rolando Álvarez defenderam a volta da democracia ao país centro-americano. Como escreveu meu amigo Marcio Antonio Campos, é preciso celebrar a coragem dos nicaraguenses diante da perseguição religiosa cada vez mais cruel no país.
Seguindo o exemplo nicaraguense, sua prima ideológica, Cuba, outro país governado por um ditador, também proibiu a realização de ao menos duas procissões de Páscoa organizadas pela Igreja. O motivo não foi explicado – ditaduras não precisam explicar seus desmandos –, mas especula-se que a ditadura liderada por Miguel Díaz-Canel não quis aglomerações de pessoas – com medo de ver novamente uma onda de protestos como os de 2018.
Por aqui também os poderosos parecem tentados a ver na religiosidade um inimigo em potencial. É algo que não podemos deixar acontecer.
Pode não parecer, mas liberdade religiosa e de expressão caminham sempre juntas. Mesmo que seja possível viver a fé de forma privada, boa parte das religiões possui formas de expressão públicas e comunitárias, como através de celebrações e cultos. Na Igreja Católica, por exemplo, os fiéis devem participar da missa ao menos aos domingos junto de sua comunidade paroquial. É por isso que, quando se fala em liberdade religiosa ou de crença, estamos falando na liberdade de poder ter uma fé, mas também de expressá-la. Não é possível falar em liberdade religiosa real se os fiéis de uma determinada religião são proibidos de realizar suas celebrações públicas, como foi o caso da proibição das procissões na Nicarágua e em Cuba.
De modo geral, regimes ditatoriais, especialmente os de viés mais esquerdista, não são grandes entusiastas da liberdade religiosa. A China, por exemplo, vem aumentando as restrições aos cristãos. Por lá, comunidades cristãs precisam ser registradas e aprovadas pelo governo, os eventos devem ser acompanhados de um "supervisor", os líderes religiosos, além de se declararem apoiadores do regime comunista, são avaliados por membros do governo – e se não agradarem, podem ser proibidos de exercer suas atividades religiosas, sem contar que as cruzes estão sendo sistematicamente removidas das igrejas.
Mas por que regimes totalitários encaram a religião e a expressão pública da fé como perigosas? No caso da Nicarágua, a perseguição geral às igrejas seria uma forma de retaliação do Estado contra ações pontuais de questionamento às políticas autoritárias do governo. É fato que nenhum regime ditatorial acolhe bem os críticos; ao contrário, quem não adere ao projeto normalmente é encarado como "inimigo do Estado" e, portanto, um alvo a ser alvejado sempre que possível. Mas há outro ponto importante.
A expressão livre da população sempre é um problema para qualquer ditadura. Regimes autocráticos reprimem a liberdade de expressão e a individualidade de todas as maneiras possíveis. Controla-se o que é dito publicamente, na imprensa, nas redes sociais, mas também se busca o controle do que é dito em reuniões e conversas em grupos privados. Os regimes ditatoriais, muitos deles ditos "populares" ou "democráticos" – que na verdade odeiam o povo e a democracia –, consideram um grave problema quando as pessoas podem ter ideias, pensamentos e sentimentos diferentes daqueles que o partido ou governante quer impor. Todo regime autocrático deseja ter o monopólio da fala sobre tudo e todos.
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Pessoas que expressam publicamente sua fé declaram para todo mundo a adesão a um projeto de vida específico, quase sempre bem distinto daquele dos regimes autocráticos. Um católico dificilmente irá encontrar muitos pontos em comum com o ideário do Partido Comunista chinês. Então, um ato público de fé, reuniões ou encontros religiosos de católicos na China, sempre será encarado como uma reunião de "dissidentes" do regime comunista, por mais que seus participantes não tenham nenhuma intenção política. Daí a insistência em controlar e tentar submeter as práticas religiosas a regramentos que esvaziem suas especificidades ao máximo, fazendo com que se convertam tanto quanto possível em uma reunião qualquer de membros do partido comunista.
É difícil tentar imaginar essa realidade, pois no Brasil ainda não chegamos a tal nível. Por aqui, os governantes de plantão tentam, na medida do possível, ter uma relação harmoniosa com as igrejas, mas o cerceamento à expressão pública da fé pelo Estado também existe. A Constituição brasileira declara proteção à liberdade religiosa, estabelecendo que a liberdade de consciência e de crença é inviolável e que é "assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Entretanto, tem crescido o número de ações judiciais que tentam cercear o direito, por exemplo, de pastores ou padres afirmarem publicamente preceitos e ensinamentos do cristianismo, sob o argumento de serem ofensivos ou discriminatórios.
Pedidos de retirada de cruzes de edifícios públicos são igualmente comuns, assim como as tentativas de se excluir lideranças religiosas – especialmente as cristãs – de discussões importantes. Podemos não ter chegado à terrível realidade da Nicarágua ou da China, mas por aqui também os poderosos parecem tentados a ver na religiosidade um inimigo em potencial. É algo que não podemos deixar acontecer. O direito de expressar a própria fé precisa ser assegurado e defendido, sempre.