A legião internacional é uma tropa criada por ordem do presidente Volodymyr Zelensky para ajudar na defesa da Ucrânia contra a invasão da Rússia. Ela é formada por combatentes internacionais, como os brasileiros Douglas Búrigo e Thalita do Valle - mortos em um ataque de mísseis no último dia 30 na cidade de Kharkiv.
Thalita, de 39 anos, era modelo, atriz, ativista de causas animais, socorrista e atiradora de elite, segundo reportagem do jornalista Herculano Barreto, do UOL. Ela já havia se envolvido no conflito curdo no Iraque e viajou à Ucrânia para lutar contra os russos.
Mas a base militar onde estava em Kharkiv foi atingida por mísseis. Búrigo, que serviu nas Forças Armadas do Brasil, morreu tentando salvá-la. Voluntários com perfis parecidos com os deles chegaram aos milhares na Ucrânia usando seus próprios recursos desde o início da guerra. Conversei com muitos deles durante minha cobertura do conflito no país.
Em geral, se diziam motivados pela defesa das democracias liberais contra a autocracia ou pela vontade de salvar vidas inocentes. Eram britânicos, alemães, franceses, portugueses, poloneses, entre muitas nacionalidades. Os voluntários do leste europeu normalmente afirmavam lutar movidos pelo sentimento antirrusso - gerado pelas invasões soviéticas a países europeus no século XX e pelos atuais crimes de guerra cometidos pelas tropas de Moscou na Ucrânia.
Outros simplesmente diziam ser atraídos pela aventura, pela possibilidade de matar russos ou pelo pagamento de 3,5 mil euros mensais para quem vai à frente de batalha.
Essa motivação menos nobre tem motivado Moscou e parte da opinião pública a classificar os legionários ucranianos como mercenários. Em março, o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba disse que a legião internacional era formada por cerca de 20 mil combatentes, mas não há números verificados de forma independente. É inegável que são muitos, pois é fácil reconhecê-los caminhando pelas ruas de qualquer cidade da Ucrânia. Usam a farda do exército ucraniano (por vezes ostentando nela as bandeiras de seus países) e falam em inglês ou francês.
Mas qual é a diferença entre um legionário e um mercenário?
Na prática, do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário, a diferença entre o combatente e o mercenário é que este, em caso de captura ou rendição, não obterá o privilégio da imunidade previsto no Estatuto do Prisioneiro de Guerra, segundo Carlos Frederico Cinelli, autor do livro “Direito Internacional Humanitário - Ética e Legitimidade no Uso da Força em Conflitos Armados” (Editora Juruá).
Ou seja, embora o mercenário capturado tenha o direito ao “tratamento de prisioneiro de guerra” (água, alimentação, não exposição, respeito à sua integridade física), ele não obterá o “status de prisioneiro de guerra”, podendo ser submetido a julgamento por ter atuado nos combates como mercenário.
“Quando um combatente regular é capturado, ele é mandado para um campo de prisioneiros de guerra para aguardar o fim do conflito ou uma troca de prisioneiros, devendo ser repatriado tão cedo quanto possível. Ainda que ele tenha matado combatentes inimigos, se tiver feito isso respeitando as leis e os costumes da guerra, ele vai para casa sem qualquer tipo de julgamento”, disse Cinelli em uma conferência destinada a jornalistas no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, na última quinta-feira (7).
Já o mercenário não goza do status de combatente reconhecido. Ele pode ser julgado pelas leis do país que o capturou e responder criminalmente por suas ações no contexto da guerra.
Para ser reconhecido como um combatente legítimo, o participante do conflito não precisa ser um militar de carreira nem ter nacionalidade do país que está em guerra. Mas precisa cumprir alguns requisitos: estar devidamente identificado no campo de batalha (com farda, braçadeira, símbolo do exército beligerante), estar subordinado a uma estrutura hierárquica de comando, usar sua arma abertamente (ou seja, sem mantê-la escondida para se passar por civil) e respeitar as leis e costumes da guerra.
Atualmente, os voluntários da legião internacional da Ucrânia possuem os pré-requisitos para o reconhecimento como combatentes legítimos. Eles usam os uniformes e distintivos ucranianos, respondem a comandantes subordinados ao Ministério da Defesa da Ucrânia e, ao serem incorporados, assinam um contrato, passam por um período de treinamento e recebem documentos ucranianos que indicam sua incorporação ao exército nacional.
No papel, eles recebem pagamentos em quantias iguais às pagas aos militares ucranianos. Os mercenários costumam se caracterizar por receber pagamentos mais altos que o soldo dos militares regulares. Na prática, o valor do salário do legionário varia de acordo com o tempo que ele passa na linha de frente.
Da mesma forma que os legionários ucranianos, voluntários da Chechênia, do Daguestão e da etnia Yakut, que também estão no campo de batalha, mas lutando pela Rússia, dizem atender aos pré-requisitos que os equiparam aos combatentes dos exércitos nacionais.
Mas, se todos esses combatentes voluntários estão “legalizados”, quem então são os temidos mercenários?
Na prática, ninguém quer assumir esse status. Em teoria, são combatentes que lutam na guerra apenas com o objetivo de obter dinheiro, vantagens pessoais ou pilhagens. Em geral, eles não respondem formalmente ao comando central dos países em guerra.
No começo da invasão russa na Ucrânia, em fevereiro deste ano, muitos voluntários da legião ucraniana caíram na categoria de mercenários - lutando ao lado das forças regulares, mas sem qualquer tipo de documentação ou vínculo formal com o Ministério da Defesa. Eles apenas recebiam armas, munições e começavam a combater imediatamente.
Mas, ao longo do conflito, essas pessoas foram identificadas pelo Ministério da Defesa e enviadas para passar por um processo de triagem em bases de treinamento situadas próximo da fronteira polonesa.
O que mudou para eles com esse processo foi perder a liberdade de sair do país quando quisessem (benefício gozado por estrangeiros na Ucrânia). Isso porque passaram a pertencer às forças armadas nacionais. Muitos deles, que haviam viajado ao país movidos por uma sede de aventura ou lucros rápidos, se recusaram a assinar o contrato no processo de triagem e foram mandados de volta para seus países.
Outro aspecto normalmente associado ao conceito de mercenário é o uso abusivo da violência. Para o Direito Internacional Humanitário, o bem maior não é a vida humana (que pode ser tirada no contexto da guerra), mas sim a dignidade dos participantes do conflito. Em outras palavras, o Direito Internacional Humanitário assume que nem sempre é possível evitar as guerras e tenta criar regras para evitar sofrimento desnecessário.
Assim, como os mercenários não respondem a uma cadeia de comando (com hierarquia e disciplina características de um exército profissional), são normalmente associados a práticas de tortura e uso abusivo da força contra inimigos - e também ao uso de violência contra não combatentes e civis.
Mas entramos aqui em uma zona cinzenta. Ao reportar de Bucha e Irpin (cidades próximas à capital Kyiv, que foram tomadas pelos russos no início do conflito), ouvi relatos de moradores afirmando que os chechenos e os yakuts, que combatem ao lado dos russos, teriam atirado indiscriminadamente contra civis ucranianos, por vezes, executando-os diante de suas famílias.
Também ouvi relatos de legionários ucranianos que disseram ter torturado e matado soldados russos capturados.
Ou seja, a realidade do campo de batalha pode diferir da letra fria do Direito. Aliada a isso, está a variedade de critérios jurídicos das Convenções de Genebra usados para designar os mercenários.
Tudo isso dificulta a tarefa de classificar quem é um mercenário e quem é um combatente regular de um exército nacional. Isso cria um campo fértil para os países em guerra usarem a participação de estrangeiros em ações de propaganda e na chamada guerra da informação.
Para complicar ainda mais a interpretação do cenário, estão presentes no campo de batalha os membros das chamadas Companhias Militares Privadas, ou PMCs, em sua sigla em inglês. O leitor já pode ter ouvido falar do Wagner Group, formado por ex-militares russos que atuavam na África e no Oriente Médio. A própria menção do grupo é usada como peça de propaganda pela Rússia para tentar aterrorizar os combatentes ucranianos.
A própria Ucrânia também contrata Companhias Militares Privadas (que não são os legionários). Mas não vamos entrar no mérito de se essas empresas, tanto russas como ucranianas, usam mercenários ou não. Esse é um debate jurídico sem fim.
A Rússia frequentemente anuncia a presença de combatentes voluntários chechenos e yakuts em suas fileiras na Ucrânia. Assim como no caso do Wagner Group, o objetivo é levar o medo às fileiras inimigas.
Diferente dos militares russos, chechenos e yakuts não compartilham elementos de identidade cultural e laços de sangue com os ucranianos, pois há grande miscigenação entre russos e ucranianos. Por causa disso, esses voluntários seriam capazes de agir sem restrições morais, cometendo atrocidades contra os soldados e contra a população civil da Ucrânia. Esse é o discurso corrente.
Mas, se por um lado o Kremlin divulga e valoriza a presença desses combatentes na batalha, por outro, acusa Zelensky de contratar mercenários ao oficializar a existência da legião internacional.
A Ucrânia, por sua vez, faz propaganda da legião como uma forma de mostrar o apoio espontâneo internacional à causa ucraniana.
Contudo, a relevância militar tanto de chechenos como de legionários no campo de batalha é questionável.
A presença das tropas chechenas na Ucrânia é, antes de tudo, um gesto de apoio do líder Ramzan Kadyrov ao governo de Vladimir Putin. Isso quer dizer, nas entrelinhas, que por ora o presidente russo não vai precisar se preocupar com um eventual novo levante na Chechênia, pois o poder político de Kadyrov está forte o suficiente para impedir isso.
Há combatentes chechenos anti-Kadyrov lutando também do lado da Ucrânia, mas a Chechênia não é o tema da coluna de hoje.
Muitos combatentes ucranianos dizem em seus relatos de guerra ter se deparado com os chechenos (pró-Rússia) no campo de batalha, mas não é possível saber o quanto disso é verdade. Por ora, a única coisa que se sabe é que Kadyrov e seus apoiadores têm gravado vídeos caprichados na retaguarda do combate, afirmando que vão avançar até Berlim.
Enquanto isso, líderes da República Separatista de Donetsk (também aliados dos russos) têm criticado os chechenos (pró-Rússia), dizendo que são mal equipados e não têm capacidade de combater.
A própria relevância da legião internacional ucraniana também é questionável. Por um lado, os legionários participaram ativamente do início da guerra, destruindo inúmeras colunas de blindados russos em emboscadas próximas da capital Kyiv.
Por outro lado, os voluntários internacionais têm acesso limitado a armas e equipamentos. Testemunhei muitos deles comprando, em lojas civis, rádios de comunicação, botas, acessórios para armas e equipamentos que não são fornecidos pelo governo ucraniano.
Membros de algumas unidades da legião também afirmaram que têm sido mandados para missões suicidas, que as tropas ucranianas nacionais evitam fazer. Fora isso, há relatos não confirmados de corrupção e de desvio de armamentos enviados pelas potências ocidentais por supostos legionários corruptos.
O leitor mais persistente, que chegou a esse ponto do texto, deve estar me perguntando: afinal, a legião internacional é ou não um exército de mercenários?
Não há uma resposta puramente jurídica para a pergunta. Ou seja, eles estão na chamada zona cinza, tão comum nas guerras. Segundo as informações que chegam do campo de batalha, não há uma regra clara. Enquanto alguns legionários são executados pelos russos no campo de batalha, outros têm sido tratados de acordo com o Estatuto do Prisioneiro de Guerra.
Ao leitor que permanece insatisfeito com a resposta, lembro que neste exato momento há dezenas de milhares de pessoas em combate nos campos de batalha ucranianos. Trata-se de um conflito de dimensões sem precedentes neste século. Regras e definições, por vezes, não se aplicam como gostaríamos nesse tipo de contexto.
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