Uma contraofensiva ucraniana avançou por 70 quilômetros em direção à fronteira russa e libertou mais de 3 mil quilômetros na região de Kharkiv desde o último dia 6 de setembro. Foi a primeira vitória das forças de Kyiv admitida por Moscou desde o início da invasão, em fevereiro.
A ação mostrou que a Ucrânia tem capacidade para fazer grandes ações ofensivas. Mas, segundo analistas ouvidos por Jogos de Guerra, a vitória no campo de batalha não significa necessariamente vitória na guerra. Isso porque os ucranianos estão sob forte pressão econômica e necessitam de ajuda financeira mensal de ao menos US$ 5 bilhões para manter as estruturas básicas do Estado funcionando.
"A Ucrânia pode até estar ganhando a guerra no campo tático-operacional, mas no campo econômico, se a ajuda econômica não chegar, o Estado ucraniano vai ruir”, afirmou o professor doutor de teoria da guerra e história militar Sandro Teixeira Moita, do Instituto Meira Mattos - o braço civil da Escola de Comando e Estado Maior do Exército.
Como foi o contra-ataque ucraniano em Kharkiv?
Em 24 de julho, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky anunciou o início da contraofensiva ucraniana. Mas ele afirmou que ela aconteceria em Kherson, um oblast (estado ou província) no sul do país que havia sido conquistado pelos russos nos primeiros dias da invasão.
Os ucranianos reuniram tropas na cidade vizinha de Mykolaiv e lançaram várias ofensivas, capturando mais de 30 vilarejos e rompendo linhas de defesa russas. Porém, a vanguarda do exército ucraniano até o momento chegou a 15 quilômetros da capital de Kherson, sem ameaçá-la diretamente.
Esse cenário deu a impressão de que as forças ucranianas não estavam avançando. Moscou havia enviado diversos batalhões de suas melhores tropas para impedir o contra-ataque - reunindo entre 20 mil e 30 mil combatentes.
Mas, em 9 de setembro, Kyiv lançou um vertiginoso ataque em uma parte inesperada do front: a periferia de Kharkiv, no nordeste do país. Colunas de cavalaria mecanizada e infantaria motorizada avançaram em pinça. Segundo Moita, o ataque foi possível pelo uso de blindados de artilharia antiaérea Gepard, de fabricação alemã.
“Eles formaram uma cortina de defesa antiaérea de baixa altura para brigadas avançarem pelo terreno”, disse ele.
Os ucranianos enfrentaram tropas da guarda nacional russa e das repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk - ou seja, não eram as unidades mais treinadas e equipadas que a Rússia enviou para a Ucrânia.
Segundo Moita, a região de Izyum, principal cidade conquistada, estaria sendo usada pelos russos como um centro de manutenção de blindados que voltavam avariados da linha de frente. Por isso, muitos deles não teriam entrado em combate e foram simplesmente abandonados pelas tropas russas em debandada.
Os ucranianos avançaram até o rio Oskil, nos limites do oblast de Kharkiv. Não progrediram mais porque a Rússia mandou tropas de sua 90ª Divisão Blindada para impedir os ucranianos de tentar cruzar o rio.
É muito difícil obter informações sobre a estratégia ucraniana, mas uma das hipóteses mais fortes é que o sucesso da ousada manobra ucraniana seria fruto uma manobra diversionária.
“Aparentemente, eles decidiram fazer o seu ataque principal na região de Kharkiv, isso depois de mais de um mês anunciando que fariam a contraofensiva em Kherson. Isso foi uma manobra diversionária, deixando os russos na dúvida, obrigado eles a concentrar os meios para defender em Kherson”, afirmou o coronel da reserva e analista militar Paulo Roberto da Silva Gomes Filho.
“Quando chegaram no limite do avanço deles, os russos passaram para uma posição de defesa em uma frente muito ampla. Certamente essa frente tinha muitos pontos vulneráveis. E os ucranianos decidiram atacar com uma superioridade de meios, com uma proporção de oito para um e isso causa um desequilíbrio muito grande. Eles acharam um ponto frágil nas defesas e entraram com bastante ímpeto”, disse Paulo Filho.
Mas outra linha de pensamento aponta que, por possuírem muito mais combatentes que os russos, os ucranianos podem atacar simultaneamente em várias frentes. Inclusive, a contraofensiva em Kherson continua.
Segundo Moita, os ucranianos iniciaram uma campanha de mobilização logo após a invasão russa e hoje contam com cerca de 700 mil homens e mulheres em armas. A Rússia começou a campanha com um efetivo entre 130 mil e 200 mil tropas e não recebeu reforços significativos até agora.
De acordo com Paulo Filho, é possível analisar as ações militares ucranianas também da perspectiva da chamada manobra estratégica operacional. Ou seja, quando um lado tenta colocar suas forças e armamentos em vantagem em relação ao inimigo.
Os ucranianos estão usando a manobra em linhas interiores. As tropas ucranianas ocupam uma posição central em relação às três principais linhas de ataque convergentes da Rússia (ofensiva de nordeste em Kharkiv, ofensiva de leste no Donbas e ofensiva de sul a partir da Crimeia). A partir dessa situação, poderiam atacar a frente russa em qualquer direção e escolheram a direção nordeste.
Segundo Moita, os ucranianos se valeram de informações de inteligência da OTAN para decidir onde atacar. “Não tenho dúvidas de que a OTAN, por meio de reconhecimento, por meio de imagem satelital, passou os dados aos ucranianos”, afirmou.
Guerra contra a inflação
A inflação ucraniana em 2022 deve ficar em torno de 30%, e o PIB do país deve cair em um terço, segundo projeções de economistas. A economia russa, por sua vez, caiu 4% no último trimestre (e pode chegar ao patamar que tinha em 2018 até o final do ano). Porém, o país está longe de quebrar, mesmo com as mais de 9 mil sanções aplicadas pelo Ocidente.
Nesse contexto, a vitória ucraniana nos subúrbios de Kharkiv foi ainda mais importante. Segundo o analista de riscos Nelson Ricardo Fernandes Silva, da consultoria ARP, o governo ucraniano precisava apresentar qualquer tipo de vitória no campo de batalha para manter o apoio do Ocidente. “Eles não tinham muitas opções, foi o que conseguiram”, disse.
Ou seja, Washington e seus aliados europeus precisam ser convencidos por Kyiv de que vale a pena continuar apoiando a Ucrânia. E uma forma de convencê-los é mostrar que o exército ucraniano pode ser vitorioso, ao menos em alguma parte da linha de frente.
Segundo Moita, se a Ucrânia não obter a ajuda financeira ocidental mensal que permite o funcionamento básico do Estado, o país pode ter que começar a imprimir dinheiro e entrar em hiperinflação.
Assim, talvez o desfecho da guerra nesse momento esteja relacionado tanto ao campo de batalha nas planícies ucranianas quanto ao combate econômico. E a Rússia se prepara para atacar nessa frente, diminuindo cada vez mais o fornecimento de energia para a Europa durante o inverno que se aproxima e apostando em desgastar seus rivais com a inflação e a pressão social relacionada ao aumento das contas de luz e gás.
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