Soldados do exército desmontam do acampamento em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste do Exército Brasileiro.| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Desde fevereiro de 2022 tenho direcionado a coluna Jogos de Guerra para seu tema principal: a guerra — palavra que uso em seu sentido literal e não como metáfora de crise política ou escaramuça relacionada à segurança pública. A invasão russa sobre a Ucrânia está longe de acabar, mas uma das propostas deste espaço também é analisar as Forças Armadas do Brasil.

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Por isso, vamos direto ao ponto: por que as Forças Armadas não cederam aos pedidos de intervenção na política feitos por milhares de manifestantes (muitos deles acreditando equivocadamente na constitucionalidade da proposta) que protestaram por meses em frente a quartéis e agora foram detidos ou dispersados?

Faço reportagens sobre assuntos militares há 17 anos, mas não tenho a resposta completa. O cenário é complexo e volátil. Neste momento, minha análise é a de que a resposta para essa pergunta passa tanto pelos valores da hierarquia e da disciplina, tão apreciados pelos militares, quanto pelo fato das Forças Armadas não terem sido acionadas pelo Executivo ou pelo Legislativo para atuar na garantia do funcionamento das instituições democráticas.

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Mas, antes de avançar na análise é melhor contextualizar alguns pontos. A normalização da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva é considerada por grande parte da população — incluindo os militares — um episódio lamentável da história política brasileira. Além disso, o Supremo Tribunal Federal vem “esticando a corda” há quase quatro anos com inquéritos ilegais e abusivos e decisões que violam as liberdades democráticas. O Congresso vem sendo omisso diante de atos do Supremo.

Contudo, nem mesmo as reivindicações consideradas mais nobres ou justas podem servir de pretexto para a violência, vandalismo, interrupção do funcionamento das instituições e violações da liberdade alheia. Um exemplo de uso equivocado da violência foi o quebra-quebra que ocorreu na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro.

Mas vamos à análise sobre o Exército:

Primeiro, um pouco de contexto. Os pedidos populares de intervenção militar na política não começaram em 2022. Ao menos desde 2016 manifestantes já faziam atos em frente aos quartéis brasileiros, pedindo aos militares providências contra decisões dos poderes políticos do país.

O tema veio à tona com força em abril de 2018, dias antes da prisão de Lula por condenações relacionadas a atos de corrupção e lavagem de dinheiro — que seriam posteriormente anuladas pelo STF.

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Os ministros do Supremo se preparavam para votar um pedido de habeas corpus preventivo, que poderia evitar a prisão de Lula. Depois de consultar o Alto Comando do Exército, o então comandante da força, Eduardo Villas Bôas, publicou um texto na rede social Twitter repudiando a impunidade no país, mas sem citar Lula ou o julgamento.

Logo depois, o STF então rejeitou o pedido de habeas corpus e Lula acabou preso. Não é possível afirmar se o resultado da votação foi ou não influenciado pelo tuíte de Villas Bôas.

Apoiadores de Lula e alguns analistas políticos interpretaram a manifestação pública do comandante como um ato político e até como uma ameaça de intervenção militar.

Meses depois, Villas Boas afirmou em um livro que o tuíte foi motivado pela insatisfação da população do país. Disse ainda que sua fala era uma resposta à demanda popular por intervenção militar. Mas, ele disse na época que essa opção era impensável.

Em seu livro, o então comandante do Exército também contou que, em sua gestão, estabeleceu uma meta de comunicação na qual a instituição deveria passar a ser ouvida pela sociedade com mais naturalidade — sem que isso fosse entendido como quebra de disciplina ou ameaça de golpe. As redes sociais do Exército se expandiram e Villas Bôas manteve uma comunicação ativa com a sociedade por meio do Twitter.

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Ainda em 2018, o Exército passou a lidar com outro grande desafio de comunicação: a associação da imagem da instituição à do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, que vinha ganhando cada vez mais força na corrida eleitoral até que sua eleição se concretizou em novembro daquele ano.

Em um processo natural, Villas Bôas, já sofrendo de doença degenerativa, deixou o comando do Exército em 2019 e foi substituído pelo general Edson Pujol. A escolha do presidente respeitou a tradição pela qual o oficial mais antigo assumia o comando da tropa.

Pujol não se comunicava pelo Twitter, mas incentivou a expansão e a normatização do uso das redes sociais por organizações militares. Em linhas gerais, a comunicação do Exército se esforçou para exibir a instituição como um órgão de Estado — na medida do possível, dissociando suas ações das pautas do governo.

Mas, o povo acabou associando a instituição do Exército com seu comandante em chefe, Bolsonaro. Principalmente depois que o presidente passou a nomear militares, da ativa e da reserva, para cargos no governo.

Em algumas ocasiões, abordagens do Exército e de Bolsonaro seguiram linhas opostas. Esse foi o caso da pandemia de Covid-19, por exemplo. Enquanto o Exército ressaltava que suas ações de combate à pandemia seguiam padrões internacionais, Bolsonaro minimizava os efeitos da doença em jovens e adultos saudáveis.

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Em 2021, a falta de alinhamento entre Bolsonaro e a cúpula das Forças Armadas culminou com a substituição do então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva (trocado pelo general Walter Souza Braga Netto) e dos três comandantes das Forças Armadas, o general Pujol (Exército), o brigadeiro Antônio Bermudez (Aeronáutica) e o almirante Ilques Barbosa (Marinha).

O comando do Exército foi assumido pelo general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Ele depois foi alçado ao cargo de Ministro da Defesa, em abril de 2022, quando Braga Netto deixou o posto para poder participar das eleições.

Em um período de três anos ocorria a terceira troca de comandante do Exército — cargo que passava a ser exercido pelo general Marco Antônio Freire Gomes.

Alto Comando discutiu a intervenção militar

Depois de ser solto da cadeia em 2019, ter suas ações penais anuladas em 2020 e sua elegibilidade confirmada em 2021 pelo STF, Lula estava pronto para concorrer novamente à Presidência.

Tais decisões do STF foram consideradas por muitos cidadãos brasileiros como uma quebra do equilíbrio de poderes por parte do Judiciário. Por isso, quando Lula se elegeu em novembro de 2022, milhares de pessoas foram protestar em frente a quartéis do Exército, pedindo intervenção militar.

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Muitos acreditavam de forma equivocada que o artigo 142 da Constituição permitiria às Forças Armadas restaurar a ordem no país, por iniciativa própria frente ao clamor popular. Essa era a tese do “contragolpe” ou do “reestabelecimento da ordem institucional”.

A hipótese foi debatida em reuniões do Alto Comando do Exército, um colegiado formado pelos 16 generais de exército e pelo comandante da força que decide os rumos da instituição.

Mas como funcionam essas reuniões?

Cada general é ouvido por seus pares e pelo comandante do Exército. Todos os generais podem expor suas ideias e argumentar sobre seus pontos de vista. Mas, isso acontece a portas fechadas. É praticamente impossível para analistas e para a imprensa saber detalhes do que aconteceu nas reuniões. O segredo dos debates por vezes é comparado ao sistema de escolha do papa no Vaticano.

Do lado de fora, no máximo consegue-se identificar algumas tendências que foram debatidas a partir de depoimentos “off the record” de participantes das reuniões — como este jornalista faz na presente coluna.

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Desde novembro, militares da reserva e analistas políticos vêm divulgando em redes sociais, aplicativos de mensagens e na imprensa o rumor de que entre três e cinco generais teriam “impedido” a maioria do Alto Comando de fazer a intervenção militar.

Assim, generais foram chamados injustamente por manifestantes e ativistas em aplicativos de mensagem de “comunistas” ou “melancias” (apelido pejorativo que acusa militares de tentarem aparentar ser de direita e esconder ideologia de esquerda. A analogia é que a melancia é verde por fora e vermelha por dentro).

Talvez aquele que tenha ganho mais repercussão na imprensa foi o comentarista político Paulo Figueiredo, que divulgou um suposto placar de votação pela intervenção militar que teria acontecido no Alto Comando.

De fato, houve divergências de ideias entre os generais da cúpula do Exército sobre o tema. Mas, diferente do que foi alegado nas redes sociais, o Alto Comando não precisa fazer votação nem tem necessidade de chegar a um consenso para tomar suas decisões.

Só há uma situação em que os generais precisam votar para chegar a uma conclusão: no processo de escolha de novos generais de exército a fazer parte da cúpula. Não era o caso.

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Nos demais assuntos, a votação não é obrigatória. Pode até ocorrer informalmente mas, na prática, cada general expõe suas ideias e, independentemente da maioria, no final quem toma a decisão é o comandante do Exército. Essa decisão passa a ser então a posição de todos os membros do Alto Comando.

Por isso, não é possível dizer que um grupo minoritário de oficiais impediu a suposta intervenção militar, conforme diziam os rumores. Há várias hipóteses para explicar a formação desses rumores. Entre elas estão: indignação de parte da população e de militares da reserva com a situação do país, tentativas de dividir e enfraquecer o Exército, falhas de jornalistas no processo de apuração da notícia ou mesmo uma tática de ativistas para tentar forçar o Alto Comando a optar pela intervenção militar.

Talvez nunca se saiba de onde esses rumores vieram e quais generais foram a favor ou contra o pedido dos manifestantes por intervenção. O que se sabe é que, apesar de entender a aflição que motivou os manifestantes que se reuniram nas portas dos quartéis, o Alto Comando decidiu não atender os pedidos por intervenção.

O então comandante Freire Gomes chegou a determinar em novembro a divulgação de uma nota interna afirmando que o Exército permanecia coeso e unido.

Ou seja, prevaleceu no Alto Comando a posição de que o Exército não pode ser um ator político. Um fator que pesou nessa decisão está relacionado à norma constitucional que determina que o Exército tem que ser acionado por algum dos poderes — Executivo, Legislativo ou Judiciário — para atuar em cenários de garantia da ordem institucional. Como nem Bolsonaro nem o Congresso fizeram tal pedido formalmente, o Exército não poderia agir por iniciativa própria. E se o pedido tivesse ocorrido, certamente também teria sido debatido no Alto Comando.

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Mas por que estamos falando apenas do Exército? Bom, na prática, a força armada com maior poder de ação num cenário eventual de intervenção seria o Exército. Com menores efetivos e meios, Aeronáutica e Marinha desempenhariam papel secundário.

O almirante Almir Garnier Santos foi comandante da Marinha durante a gestão de Bolsonaro e se recusou a passar o cargo para seu sucessor, o almirante Marcos Sampaio Olsen. Seu ato foi ovacionado pelo segmento de cidadãos e militares da reserva que defendiam a intervenção militar.

Segundo essa visão equivocada dos manifestantes e militares da reserva — motivada em parte pelos abusos políticos que vêm ocorrendo no país —, Garnier teria sido o único comandante que teve coragem para se opor a Lula e ao STF, não cedendo ao suposto corporativismo de seus colegas.

Porém, sob outra interpretação, a atitude dele desautorizou tanto o novo comandante da Marinha como os comandantes do Exército e da Aeronáutica. Quando a liderança militar é enfraquecida, aumenta a possibilidade de insubordinação e violência.

“Às vezes você quer fazer algo, mas não pode porque faz parte de uma instituição. O individualismo não pode prevalecer”, disse um dos militares da ativa ouvidos por este colunista sob anonimato. Segundo ele, esse é o significado de hierarquia e disciplina.

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Para os militares da reserva ou os manifestantes é fácil pedir medidas radicais como uma intervenção militar — até porque eles não serão responsabilizados formalmente nem arcarão com o peso moral das consequências.

Isso não significa, porém, que os militares de alto escalão estejam apoiando a esquerda no Brasil. Pelo contrário, a maioria daqueles com quem conversei estão insatisfeitos com o novo governo e especialmente com a posição que o STF tem adotado de investigar e ao mesmo julgar praticamente qualquer tipo de assunto.

Eles também desconfiam do tipo de relações políticas que o atual governo pretende estabelecer com outros governos de esquerda da América do Sul.

Assim, o fato da equivocada mobilização por intervenção militar ter se esvaído por ora não dissipou a onda generalizada de descontentamento.

No momento, muitos militares dizem que preferem se voltar para as atividades internas das Forças Armadas, mantendo a esperança de que o Congresso que começará a funcionar em fevereiro possa trazer equilíbrio à nação.

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Enquanto isso, o Exército deve continuar mantendo os princípios de hierarquia e da disciplina.