A guerra na Ucrânia não terminou - muito pelo contrário, continua sendo um confronto de alta intensidade, que já deixou mais de 40 mil civis mortos. Porém, completados dez meses de guerra, já é possível identificar ao menos cinco aspectos do maior conflito bélico do século 21 que não saíram exatamente como muitos analistas esperavam. Eles são a guerra cibernética, as sanções econômicas, as armas de alta tecnologia, os drones e a propaganda.
O conflito na Ucrânia acelerou uma corrida armamentista que vinha se delineando desde 2018 - quando aumentou a rivalidade entre Estados Unidos e China. Nações europeias voltaram a investir em grandes exércitos, com receio de que a promessa de proteção de Washington talvez não seja suficiente para garantir sua segurança. Temor semelhante tem levado o Japão e países do Indo-Pacífico a tomar rumo semelhante.
O novo governo no Brasil pode não ser capaz de alterar o atual cenário de escassez de investimentos na área militar. Mesmo assim, ao pensar a estratégia brasileira de defesa, devemos levar em conta as tendências reveladas pela guerra da Ucrânia.
Guerra cibernética
As ações no campo de batalha virtual vinham sendo tratadas nas últimas décadas por analistas como um dos fatores mais importantes das guerras do futuro. Hackers seriam capazes de destruir redes elétricas, desabilitar sistemas de comunicação militar, destruir sistemas logísticos e tornar armamentos cinéticos (não virtuais) inúteis.
Porém, essas teorias não haviam sido testadas em um conflito de larga escala. A maioria das previsões não se concretizou na guerra na Ucrânia. A batalha virtual teve um papel secundário no teatro de operações.
Sistemas eletrônicos fundamentais para o funcionamento da sociedade ucraniana - como redes de transporte ou de movimentação financeira - foram transferidos de centros de dados locais para “nuvens” cibernéticas espalhadas por toda a Europa. Quando os computadores ucranianos foram atacados, não havia mais dados lá para serem destruídos.
Além disso, ações de hackers russos que levaram meses para ser preparadas causaram, no máximo, apagões de algumas horas em redes elétricas e de comunicações da Ucrânia. Sistemas de emergência foram colocados em operação rapidamente, tornando inúteis os esforços dos ratos de computadores do Kremlin.
Moscou passou então a usar mísseis nada virtuais para destruir o sistema elétrico e a infraestrutura ucraniana.
A lição que tiramos disso é que os ataques cibernéticos podem ser eficazes para causar transtornos a países em tempos de paz. Também servem para obter recursos financeiros, como no caso da Coreia do Norte, ou roubar tecnologia alheia, como já demonstrou a China. Porém, eles não se mostraram capazes de mudar a sorte de um exército no campo de batalha.
Sanções
Na geopolítica, as sanções econômicas são um meio termo entre declarações diplomáticas vazias e intervenções militares.
Os Estados Unidos e seus aliados da Europa levantaram centenas de sanções contra a Rússia, para diminuir a capacidade do presidente Vladimir Putin de financiar sua campanha militar. Contudo, a economia russa só retraiu 3,4% - um cenário muito diferente da queda de dois dígitos prevista por alguns analistas após a invasão de 24 de fevereiro de 2022.
A Rússia, de fato, está tendo muita dificuldade de importar itens de alta tecnologia. Mas sua economia foi “salva” principalmente pela venda de derivados de petróleo para países do sudeste asiático, especialmente China e Índia. Esses países também têm substituído a Europa no papel de fornecer produtos industrializados para a Rússia.
A guerra também acelerou um processo no qual diversos países começam a desenvolver mecanismos para se tornarem menos vulneráveis a sanções promovidas por Washington. Entre eles, estão trocas diretas de moeda entre países, sem intermédio do dólar, sistemas de mensagens bancárias alternativos ao Swift, como o CIPS chinês, e moedas digitais de bancos centrais, as chamadas CBDC.
Neste caso, a lição é que, apesar de serem um instrumento poderoso para enfraquecer rivais, as sanções parecem não ser mais capazes de evitar ou acabar com guerras - nem forçar potências a se submeterem à vontade de Washington e de seus aliados.
Armas de alta tecnologia
Uma das coisas que mais surpreenderam nesta guerra foi a coexistência no campo de batalha de armas de última geração com táticas e armamentos usados nas guerras mundiais do século 20. Ou seja, a Guerra da Ucrânia não é um conflito hipertecnológico, no qual os oponentes travam batalhas apenas apertando botões, longe disso.
Foi possível presenciar o uso daquela que talvez seja a arma mais avançada do planeta: o míssil hipersônico - capaz de inutilizar qualquer sistema de defesa antiaérea. Ele foi lançado pela Rússia, por exemplo, contra um depósito de munições de caças ucranianos na região de Lviv, em março.
Também é possível destacar a destruição de milhares de blindados, de ambos os lados, por lançadores de mísseis de uso individual, como o Javelin, cujo nome foi popularizado pela eficácia no campo de batalha. Houve ainda a utilização dos Himars, os lançadores de mísseis de alta mobilidade, doados por Washington, que permitiram aos ucranianos fazer frente à artilharia russa.
Mas, no mesmo conflito, dezenas de milhares de soldados estão usando táticas da Primeira Guerra Mundial, como a guerra de trincheiras, os campos minados e os confrontos com canhões de artilharia.
Trata-se de uma guerra de proporções tão massivas, que pouco lembra as imagens da chamada “guerra ao terror”, quando operadores de forças especiais do Ocidente combatiam guerrilheiros com recursos militares abundantes - usando comunicação avançada para solicitar evacuações por helicóptero de feridos ou para ordenar ataques aéreos contra posições inimigas.
Não, na Ucrânia há tantos combatentes lutando ao mesmo tempo que faltam médicos, ambulâncias, comunicações e até munição em alguns casos. Ao lado dos militares profissionais, há civis que nunca haviam colocado as mãos em armas e combatentes usando armamentos similares aos que eram utilizados na primeira metade do século passado.
A lição aqui é que a presença de armas avançadas no campo de batalha aumenta as chances dos exércitos que as possuem. Porém, não há uma arma ou tecnologia que, por si só, seja capaz de definir o resultado da guerra. Há muitos outros fatores em jogo, como logística, terreno, treinamento de efetivos, motivação dos combatentes, manobras militares etc.
Drones
Diferente da guerra cibernética, os veículos não tripulados estão fazendo a diferença na guerra na Ucrânia. Esse parece ser só o começo, pois os veículos não tripulados devem estar presentes cada vez mais nos conflitos do futuro.
Seu uso havia sido previsto de forma similar ao conceito de drone que foi usado nas “guerras contra o terror” do início deste século. Nelas, aviões não tripulados do tamanho de aviões de caça ficavam horas em voo para abater inimigos com foguetes. Sua vantagem era permanecer em operação por muitas horas, sem a necessidade de pousar para o piloto descansar.
Mas esses drones são muito mais lentos e menos armados que os aviões de caça tradicionais. Seu uso seria limitado em guerras convencionais, pois rapidamente se tornariam alvos fáceis para os caças tripulados do inimigo, segundo diziam os especialistas.
Mas não foi isso que ocorreu na prática. Um exemplo foi o dos drones turcos Bayraktar - aeronaves de controle remoto de grandes proporções, semelhantes aos drones usados na guerra ao terror. Eles foram comprados pelos ucranianos e usados para destruir grande quantidade de blindados russos no início da invasão.
Seu conceito de uso foi mudando ao longo do conflito. Ataques singulares dessa aeronave foram sendo substituídos por ataques em “enxame” - quando vários drones investem contra um mesmo alvo simultaneamente, com o objetivo de confundir as defesas antiaéreas. Acredita-se que foi com ataques de diversos drones e mísseis antinavio que a Ucrânia afundou em abril o cruzador Moscou, o navio capitânia dos russos no Mar Negro.
Mas o Kremlin retribuiu na mesma moeda: comprou drones iranianos Shared, que são menores que os Bayraktar e, ao invés de foguetes, levam explosivos e são detonados quando o aparelho se choca contra seu alvo, ao estilo kamikaze. Desde outubro, centenas desses drones estão sendo combinados a ataques de mísseis de cruzeiro para saturar as defesas aéreas ucranianas e destruir a infraestrutura elétrica do país.
A estratégia não fez a Ucrânia aceitar um acordo de paz, mas obrigou seus aliados do Ocidente a investir pesado no envio de defesas antiaéreas para o país.
A Ucrânia utiliza ainda drones navais, que são pequenas embarcações carregadas de explosivos que atuam de forma kamikaze, como os drones aéreos do Irã. Diversos desses barcos foram usados em novembro para atacar o porto russo de Sevastopol.
Em paralelo, drones aéreos comerciais - aqueles aparelhos um pouco maiores que uma bola de futebol que você pode encomendar até pela internet - passaram a ser usados como armas de guerra. Primeiro, eles eram usados como plataformas de observação: os combatentes os lançavam para observar inimigos quilômetros à frente.
Depois, esses pequenos drones eram usados para levar granadas de mão e lançá-las contra inimigos. Aos poucos, as granadas e seus sistemas rudimentares de lançamento passaram a ser substituídos por bombas não teleguiadas, mas de alta capacidade explosiva que começaram a gerar baixas significativas entre soldados e blindados.
Quando estive na Ucrânia em 2022, tive contato ainda com técnicos que estudavam agora uma próxima fase: programas de computador que controlam centenas de drones minúsculos ao mesmo tempo e os fazem atacar alvos com a técnica de “enxame”, sem a necessidade de pilotos humanos.
A lição neste caso é que dificilmente uma guerra convencional futura será travada sem o uso de drones. Podemos esperar, por exemplo, que até tanques remotamente controlados e sistemas completamente independentes de interação humana sejam vistos nos conflitos do amanhã.
Propaganda
Analistas já previam que a propaganda desempenharia um papel de grande importância nas guerras na era da informação. O que ninguém imaginava é que ela influenciasse até mesmo os seus criadores.
Foi isso que parece ter acontecido com a Rússia. Sem receber informações claras de seus órgãos militares e de inteligência, o presidente Vladimir Putin teria sido uma das “vítimas” da propaganda sobre o poderio militar russo e a eficácia das operações especiais de cooptação da população ucraniana.
Ou seja, segundo documentos militares apreendidos no campo de batalha, as forças russas imaginavam que enfrentariam pouca resistência na Ucrânia e marchariam sobre Kyiv horas depois do início da invasão em 24 de fevereiro.
O erro de avaliação pode ter sido causado por diversos fatores: medo de assessores da reação de Putin a prognósticos negativos, corrupção generalizada nos órgãos de inteligência, desvio de recursos que seriam usados para modernizar as forças armadas e criar movimentos rebeldes dentro da Ucrânia, entre outros.
Nesse aspecto, podemos concluir que as campanhas de informação e a propaganda desempenham um papel muito importante no conflito. Mas elas também não são capazes de definir por si só o rumo da guerra.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro
Enquete: como o Brasil deve responder ao boicote de empresas francesas à carne do Mercosul?
“Esmeralda Bahia” será extraditada dos EUA ao Brasil após 9 anos de disputa
Deixe sua opinião