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A diretora de comunicação da Casa Branca, Kate Bedingfield, afirmou nesta quinta-feira (31) que o presidente russo, Vladimir Putin, “se sentiu enganado pelos militares russos” - que não teriam contado a ele sobre fracassos no campo de batalha na Ucrânia, por sentirem medo de sua reação. Para Washington, a guerra foi mal planejada por Putin desde o início.
Em uma ação aparentemente coordenada, a inteligência britânica afirmou que as tropas russas estão ficando sem equipamentos, desmoralizadas e se recusando a obedecer ordens.
Porém, as principais batalhas da Ucrânia estão acontecendo justamente em regiões que possuem grandes jazidas de gás natural e carvão.
Isso nos leva à questão: será que Putin é um líder desinformado que possui um arsenal nuclear e perdeu o contato com a realidade (como o Ocidente o vem retratando)? Ou ele tem um plano calculado que pode surpreender os Estados Unidos e seus aliados?
Segundo relatórios de inteligência que vêm sendo divulgados pelas potências ocidentais, Putin subestimou a capacidade de resistência ucraniana ao lançar uma campanha militar abrangendo todo o país. Ele teria pensado que a população ucraniana estava ansiosa para ser “libertada” de seu governo pró-Ocidente e “nazista”, nas palavras de Putin.
O mandatário russo também teria calculado que conseguiria facilmente entrar na capital Kiev, tomar os edifícios do governo e prender ou assassinar o presidente Volodymyr Zelensky -instaurando um governo pró-Moscou. Mas suas tropas até agora não conseguiram invadir a capital e nem mesmo envolvê-la em um cerco.
Putin estaria agora encurralado e cogitando o uso de armas nucleares, químicas ou biológicas para salvar uma campanha militar fracassada, segundo autoridades do Ocidente.
O Kremlin deu sinais de que seus objetivos são impedir que a Ucrânia se una à OTAN (aliança militar ocidental), tornar o país neutro e possivelmente desmilitarizado e trocar o governo de Zelensky por outro mais simpático a Moscou.
Porém, os russos nunca detalharam totalmente seus objetivos e deixaram o Ocidente fazer conjecturas. O porta-voz de Putin, Dmitry Peskov, disse que os americanos “simplesmente não entendem o que está acontecendo no Kremlin”.
“Eles não entendem o presidente Putin, eles não entendem como as decisões são tomadas e eles não entendem o estilo do nosso trabalho”, disse Peskov.
Assim, não se pode descartar a hipótese de que haja mais objetivos ocultos na campanha militar da Ucrânia. Um deles pode ser uma motivação conhecida para guerras: o domínio de regiões ricas em fontes de energia - no caso, gás natural e carvão.
Segundo um estudo da universidade de Harvard, a Ucrânia tem mais de 1 trilhão de metros cúbicos de reservas de gás natural. Na Europa (excluindo as reservas asiáticas da Rússia), o país perde apenas para a Noruega, que possui 1,5 trilhão de metros cúbicos. Atualmente, a Ucrânia explora somente 2% desse potencial e importa quase a metade dos quase 30 bilhões de metros cúbicos que consome anualmente.
Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), essas são as reservas conhecidas da Ucrânia, mas há estimativas de que o país possua jazidas de até 5,4 trilhões de metros cúbicos de gás natural ainda não comprovadas.
O país também possui a maior rede de gasodutos da Europa - herdada da era soviética -, que pode ser usada para estocar e exportar o produto para a União Europeia. O bloco europeu atualmente importa 90% do gás que consome e depende muito da Rússia para suprir essa necessidade.
Por isso, uma hipótese para a guerra começa a ganhar força entre os analistas: a Rússia pode estar tentando assegurar o domínio energético na região, para tornar a Europa ainda mais dependente de seu gás natural e hidrocarbonetos.
Segundo a AIE, 80% das reservas comprovadas de gás natural da Ucrânia estão em uma área chamada Dnieper-Donetsk. É justamente nessa área que a Rússia tem concentrado seus maiores esforços de guerra no momento. Também é nessa região que estão as maiores reservas de carvão negro da Ucrânia.
Aproximadamente 6% das reservas de gás natural ucranianas estão em áreas terrestres e marítimas do Mar de Azov (praticamente já conquistado pela Rússia, exceto pela cidade de Mariupol) e no Mar Negro - nessa área, a Rússia já havia assegurado a região da Crimeia em 2014 e tentou avançar em direção ao porto de Odessa, mas foi contida em Mykolaiv.
O restante das reservas de gás do país está no oeste, próximo à fronteira da Polônia - região que até agora não foi ameaçada pelas tropas russas.
Ou seja, talvez desde o início Putin não quisesse dominar a totalidade do território ucraniano.
Mas então por que ele atacou a capital Kiev, que não tem reservas de hidrocarbonetos nem é um alvo militar de importância estratégica incontestável?
Não podemos descartar que seu objetivo inicial fosse derrubar o governo. Mas outra hipótese é que, ao atacar Kiev, Putin obrigou as forças armadas ucranianas a usar uma grande parcela de seus recursos militares para defender a capital.
Com a presença dos russos em posições defensivas próximas de Kiev, essas tropas ucranianas acabam ficando presas na região e não podem ser deslocadas para apoiar a frente de batalha leste - onde está a maioria das reservas de hidrocarbonetos.
Enquanto isso, os russos tentam fazer um movimento de pinça para atacar as forças ucranianas que lutam na região de Donbass pela retaguarda e isolá-las. Se conseguir completar essa manobra, Putin poderá conquistar todo o leste do país.
Parte dos analistas militares e uma grande parcela da população ucraniana pensam que ele pode ir até mais além. Putin poderia tentar tomar todo o território da Ucrânia entre o rio Dnieper (que praticamente corta o país ao meio) e a fronteira com a Rússia a leste.
Em paralelo, apesar das sanções ocidentais, a Rússia continua fornecendo ao menos 30% do gás natural consumido na Europa, segundo a AIE. Para aumentar a pressão sobre os europeus, Putin ameaça cortar esse suprimento e agora exige que os pagamentos à Gazprom sejam feitos em rublos - o que pode aumentar a força da moeda frente ao dólar, ao euro e à libra.
Ou seja, a Rússia pode estar tentando conquistar as reservas energéticas da Ucrânia ou impedir que o país as explore (destruindo infraestrutura e tornando a Ucrânia um país falido).
Recentemente, a Ucrânia havia abolido políticas de subsídio energético que impediam a nação de ser competitiva na área. Mas o caminho não seria fácil. Segundo o estudo da Harvard, seria necessário um investimento de cerca de US$ 20 bilhões para explorar as reservas de gás do país.
Se a guerra não tivesse acontecido, Kiev poderia começar a caminhar aos poucos para concorrer com a Rússia no suprimento de gás para a Europa. Ou ainda usar seu gás para entrar no mercado de energia limpa, com a produção de hidrogênio combustível.
Apesar de tudo isso, seria precipitado dizer que a guerra na Ucrânia é motivada apenas por recursos naturais e economia. Não é recomendável ignorar a ameaça representada, no ponto de vista russo, pela expansão sistemática da OTAN para leste.
Contudo, se o cenário da luta pelos hidrocarbonetos do leste ucraniano se confirmar, é possível que a guerra ainda se estenda por um longo tempo.