A visita a Taiwan da presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, enviou uma mensagem anti-imperialista à China. Porém, prejudicou interesses de Washington e de Kyiv na guerra na Ucrânia. Isso porque o desafio à China tem potencial para aproximar diplomaticamente ainda mais Pequim e Moscou.
“Por ora, a China está avaliando e tem, sim, neutralidade. Eu serei honesto: essa neutralidade é melhor do que a China se juntar à Rússia.” A afirmação é do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Ela chamou a atenção na quarta-feira (3) por destoar do usual tom combativo do líder da Ucrânia. Parece refletir a preocupação com as possíveis consequências do apoio de Pelosi a Taiwan.
A congressista americana Pelosi esteve na ilha de Taiwan nesta semana, entre terça (2) e quarta-feira. Ela se encontrou com a presidente Tsai Ing-wen em Taipei.
A visita enfureceu o governo chinês, que entendeu a ação como uma ingerência americana em assuntos internos do país. O governo de Xi Jinping tem entre seus principais objetivos políticos retomar o controle sobre a ilha - que tem um governo democrático autônomo, mas não é reconhecida como independente pela maior parte da comunidade internacional.
Principalmente para dar uma resposta ao público interno, Pequim realizou exercícios militares próximo a Taiwan em uma escala sem precedentes. Ao menos um míssil teria cruzado a ilha e caído no mar. Os disparos afetaram ainda a área marítima da zona econômica exclusiva do Japão. Participaram das manobras militares ao menos cem aviões e dez navios de guerra.
Na Rússia, a visita de Pelosi a Taiwan foi classificada como uma “provocação” americana contra a China, segundo a porta-voz da chancelaria, Maria Zakharova. Ela afirmou que Moscou apoia o princípio de “uma China” e se opõe a qualquer forma de independência de Taiwan. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que os russos expressam “solidariedade absoluta” com a China em relação à ação de Pelosi.
Em 4 de fevereiro, pouco antes do início da invasão russa à Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin e o líder chinês, Xi Jinping, haviam anunciado durante a Olimpíada de Inverno de Pequim uma “parceria sem limites” - na qual declaravam apoio mútuo em relação às questões da Ucrânia e de Taiwan. Em uma declaração conjunta, os países discorreram, entre outros temas, sobre multipolaridade e redistribuição de poder no mundo.
A declaração foi interpretada por analistas ocidentais como uma espécie de pacto de não agressão, que teria potencial para levar a um realinhamento da ordem mundial - o que poderia gerar um novo tipo de Guerra Fria.
Após a invasão russa na Ucrânia, a China se disse neutra e evitou participar de movimentos diplomáticos arquitetados pelo Ocidente para condenar o ataque de Moscou nas Nações Unidas.
Mas, enquanto os Estados Unidos e seus aliados tentavam isolar a economia da Rússia por meio de sanções, os chineses aumentavam suas compras de energia russa. Um dos principais objetivos do Ocidente é diminuir a renda de Moscou com a exportação de petróleo para assim enfraquecer o país e diminuir sua capacidade de guerrear.
Em maio, as importações chinesas de petróleo russo subiram 55% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo a rede britânica BBC. Por causa disso, a Rússia desbancou a Arábia Saudita como maior fornecedora de petróleo para a China. No mesmo mês, as exportações de produtos chineses para a Rússia cresceram 14% - fruto de substituições de importações ocidentais feitas pelo Kremlin.
Além disso, está sendo construído um novo gasoduto para ligar os dois países e assim aumentar em 10 bilhões de metros cúbicos por ano as exportações russas para os chineses. Ele deve ficar pronto em dois ou três anos.
Um dos maiores temores dos ucranianos era que a China passasse a fornecer equipamentos militares para a Rússia. Porém, isso não tem ocorrido devido à pressão americana.
Da mesma forma, os Estados Unidos vêm intimidando empresas de tecnologia para evitar exportações para a Rússia. Segundo o departamento de comércio americano, as exportações globais de semicondutores para a Rússia caíram 90% desde o início da guerra. Eles são essenciais para a indústria armamentista russa, que depende de chips para fazer armas.
Por outro lado, não parece possível que Washington e seus aliados tenham capacidade de tentar punir Pequim com isolamento econômico. Alguns analistas dizem que a economia chinesa pode suplantar a americana na próxima década.
Assim, a parceria entre Rússia e China parece ser, por ora, um “casamento de conveniência”, movido principalmente pelo antagonismo comum em relação aos Estados Unidos.
O que o Ocidente e Zelensky parecem tentar evitar é o aprofundamento dessa parceria. Por isso, o presidente ucraniano baixou o tom e tenta costurar um encontro com Xi Jinping.
“A visita de Nancy Pelosi a Taiwan foi ruim para os interesses americanos na Ucrânia. Os Estados Unidos querem isolar a Rússia, mas acabaram dando motivo para os chineses se aproximarem mais dos russos”, disse o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, mestre em estudos de defesa e estratégia pela Universidade Nacional de Defesa da República Popular da China.
Não se sabe ao certo se a ação de Pelosi, parlamentar conhecida por seu ativismo em relação a Taiwan, foi fruto de sua iniciativa individual ou se foi uma ação orquestrada com o governo democrata de Joe Biden. A visita acabou sendo criticada por membros do Partido Democrata e elogiada por integrantes do Partido Republicano.
Além das manobras militares na região de Taiwan, a visita já está causando deterioração nas relações diplomáticas entre Pequim e Washington. Na sexta-feira (5), a China anunciou paralisações na cooperação entre os dois países nas áreas militar, de combate à mudança climática, imigração e esforços para controlar o tráfico de drogas global.
A possibilidade da China invadir Taiwan ou eventualmente entrar em guerra com os Estados Unidos é considerada remota por analistas. Para invadir a ilha, Pequim teria que fazer uma operação de desembarque anfíbio, considerada extremamente complexa e dispendiosa. Além disso, um ataque direto a cidadãos que partilham com a China as mesmas raízes poderia ser considerado fratricídio - e assim ter um forte impacto negativo na popularidade de Xi Jinping.
Mas não se sabe ainda até que ponto a deterioração das relações diplomáticas entre americanos e chineses gerará maior impacto na guerra da Ucrânia - ou se desencadeará maior suporte econômico chinês aos russos.
Últimas notícias do campo de batalha
Na última semana, a coluna Jogos de Guerra analisou as possíveis consequências políticas de uma contraofensiva ucraniana no sul do país. Ao longo dos últimos dias, combatentes ucranianos no campo de batalha disseram a este colunista ter recebido informações de que a Rússia está enviando entre 20 e 30 mil soldados para tentar conter o contra-ataque na região ocupada de Kherson. A Rússia confirmou o envio de reforços, mas não fornece números.
A troca de fogo de artilharia entre russos e ucranianos no território entre Mykolaiv e Kherson tem sido intensa. Esse é hoje o principal campo de batalha da guerra. Mas não surgiram notícias de avanços significativos da Ucrânia em direção a Kherson.
Em Zaporizhzhia, ucranianos vêm acusando a Rússia de usar a usina nuclear de Enerhodar como um escudo. Moscou teria posicionado diversas peças de artilharia entre os seis reatores nucleares e disparado contra regiões vizinhas defendidas pelo exército ucraniano. O exército de Kyiv não pode revidar para não causar uma catástrofe nuclear.
Na frente informacional, Rússia e Ucrânia debatem quem é o responsável por uma explosão no campo de prisioneiros de guerra de Yelenovka, em Donetsk. No dia 29 de julho, uma detonação matou 53 combatentes ucranianos que eram mantidos detidos no local e deixou dezenas de feridos. Eles eram integrantes do Batalhão Azov que haviam se rendido no cerco à cidade de Mariupol.
A Rússia acusou a Ucrânia de ter causado a explosão ao disparar um foguete Himars contra a prisão de forma acidental.
A Ucrânia disse ter provas de que combatentes da República Separatista de Donetsk, aliados da Rússia, detonaram uma bomba dentro da prisão para matar os prisioneiros e assim ocultar indícios de tortura praticada contra eles. Foram apontados como indícios disso supostas escutas telefônicas que mostrariam oficiais ligados à Rússia comentando a operação e o fato de que as janelas das edificações vizinhas ficaram intactas - o que apontaria para o uso de uma bomba e não de um foguete.
A Ucrânia diz que está investigando o caso, mas não há por ora processo investigatório independente.
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