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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Conflito no leste europeu

Como Putin manipula a história para justificar a guerra na Ucrânia

Refugiada de Mariupol, Ucrânia, assiste em Moscou ao pronunciamento televisivo de Vladimir Putin na última quarta-feira (21), no qual o presidente russo anunciou a mobilização de 300 mil reservistas (Foto: EFE/Sergei Ilnitsky)

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O presidente russo, Vladimir Putin, tem uma interpretação da história que vem sendo comparada por analistas a uma narrativa da época do czarismo, na qual a Rússia se outorgava o direito de dominar as nações vizinhas. Com base nessa visão de mundo, Putin vem utilizando personagens de séculos passados e recortes de fatos que dão um viés bem diferente da história aceita mundialmente para tentar justificar a invasão da Ucrânia.

Não é novidade que a guerra se desenrola em meio a uma disputa de narrativas e versões, que tentam justificar ações tanto do Kremlin como da OTAN (aliança militar ocidental). Nesse contexto, começou a ganhar atenção o argumento russo de que a invasão aconteceu em resposta à expansão da OTAN para o leste - o que teria sido interpretado por Moscou como uma ameaça às suas fronteiras.

Mas então, por que quando a Finlândia e a Suécia anunciaram em junho que queriam entrar para a OTAN, Putin não as invadiu? Pelo contrário, ele afirmou que o Kremlin “não tem problemas com a Suécia e com a Finlândia como tem com a Ucrânia”.

Uma interpretação possível é que geograficamente é mais fácil para um exército invadir a Rússia pela fronteira com a Ucrânia do que pela Suécia ou pela Finlândia.

Mas outra hipótese é que o presidente russo acredita que tem direito histórico - ou mesmo divino, segundo alguns analistas - de incorporar a Ucrânia à “Grande Rússia”. Essa hipótese ganhou muita força com a análise de um ensaio publicado em 2021 em nome de Putin sob o título “Sobre a Unidade Histórica dos Russos e Ucranianos”. Ele está disponível na página do Kremlin, em inglês.

Esse texto apresenta tanto argumentos consistentes para a tese de Putin, como uma série de fatos históricos distorcidos, apresentados apenas parcialmente ou retirados de contexto.

“Expansão da OTAN ou questão mais histórica, o que motiva a Rússia? Na minha opinião, são as duas coisas”, afirmou o historiador da Universidade de São Paulo (USP) Angelo Segrillo, mestre em língua e literatura russa pelo Instituto Pushkin, de Moscou, e autor do livro “O Declínio da União Soviética: um estudo das causas” (Editora Record).

“A expansão da OTAN é um grande problema para a Rússia. Qualquer grande potência não aceita ser cercada por uma aliança militar estrangeira. Mas com a Ucrânia tem essa coisa especial, tem uma guerra historiográfica”, disse Segrillo.

Tanto ucranianos como russos têm origem no chamado povo Rus, que existiu entre os séculos 9 e 13 na região chamada Kyivan Rus. Eles eram uma confederação de cidades-estados, que coexistiam no leste europeu em um sistema de vassalagem ao Grande Príncipe de Kyiv (um título semelhante ao de um rei medieval).

Na versão de Putin dessa história, o Grande Príncipe Vladimir I se converteu ao cristianismo em 988 e assim se tornou o santo dos cristãos ortodoxos. Mas, segundo o presidente russo, esse príncipe pertencia a Moscou, não a Kyiv.

Porém, Moscou só foi criada mais de 150 anos depois. A primeira referência à cidade data de 1147. Ela foi fundada por um familiar de um dos grandes príncipes de Kyiv.

Segundo Segrillo, entre os séculos 13 e 15, a região de Kyivan Rus foi dominada pelos mongóis. Quando a dominação acabou, o povo Rus se reuniu em ao menos três diferentes grupos, que hoje correspondem aos ucranianos, bielorrussos e russos.

Nos séculos seguintes, os russos conseguiram formar um império forte, mas os ucranianos não. Eles tiveram seu território anexado por uma série de impérios que dominaram a região - inclusive o Império Russo.

Os imperadores russos Pedro, o Grande, e Catarina II conquistaram boa parte do que hoje é o território da Ucrânia dos impérios Otomano e Sueco. Putin não só destaca esse fato para argumentar que a Ucrânia não existiu como nação independente, como parece se inspirar na história desses imperadores.

“Todos juravam lealdade ao soberano, então, teoricamente, não existiria uma subordinação dos ucranianos aos russos. Tanto que quando houve a incorporação [da maioria dos territórios ucranianos ao Império Russo no século 18], a soberana era uma alemã, Catarina II, a Grande, ela era alemã de origem, por exemplo”, disse Segrillo.

Cultura

Putin argumenta que russos e ucranianos partilham da mesma herança cultural. Ele cita, por exemplo, o poeta ucraniano Tara Shevchenko, que escrevia poesia em ucraniano e prosa em russo. Além do escritor Nikolay Gogol, que escrevia em russo, mas se baseava em temas do folclore ucraniano.

O presidente russo justifica a existência de uma língua ucraniana dizendo que muitos anos de fragmentação resultaram em "peculiaridades linguísticas regionais”.

Na verdade, ucranianos e russos têm influências culturais bastante distintas, segundo a especialista em literatura Anastasiya Kuchkovska.

De acordo com ela, os mitos e lendas que basearam a literatura russa são originados em idiomas fino-úgricos, de sociedades de características nômades que ocupavam áreas das atuais Finlândia, Lapônia, Hungria e Sibéria. Já a base do folclore ucraniano está mais ligada à Citia (que hoje ficaria nos territórios da Romênia, Bulgária e partes do rio Danúbio) e a grupos de amazonas da Antiguidade.

Mas, segundo Kuchkovska, apesar da manipulação, parte da argumentação do presidente Putin tem fundamento. Nas regiões que hoje formam a fronteira da Ucrânia com a Rússia no leste, há muitas semelhanças culturais entre os dois povos.

O mandatário russo também usa argumentos linguísticos em seu ensaio. Ele diz que a palavra em russo que teria dado origem ao nome Ucrânia tem o sentido de “periferia”. Ele também designa os ucranianos com uma palavra que quer dizer “pequenos russos”.

“Putin tenta resgatar uma visão que não é só dele, que vem desde a época czarista, de que os ucranianos eram os irmãos menores”, disse Segrillo.

Putin e o comunismo

A principal crítica de Putin ao comunismo se direciona ao líder bolchevique Vladimir Lenin. O presidente russo diz acreditar que Lenin foi o culpado pela divisão do território da Rússia e da criação da Ucrânia - segundo ele, um país que nunca havia existido antes.

Ou seja, os czares reinaram sobre uma Rússia unificada, porém formada por uma grande quantidade de diferentes etnias e nacionalidades. Elas eram mantidas sob só um governo por meio da força.

Durante a Guerra Civil Russa, entre 1918 e 1920, parte da Ucrânia chegou a declarar independência. Putin diz que a ideia de que o povo ucraniano não pertence à Rússia teria sido fabricada pela elite polonesa e também por intelectuais do povo que ele chama de “pequenos russos” - ou seja, os próprios ucranianos.

Para chegar ao poder, os bolcheviques prometeram que as diversas nacionalidades da futura União Soviética não seriam discriminadas - e por isso ganharam grande apoio. Segundo Segrillo, foi Lenin quem defendeu que o nacionalismo fosse incorporado ao comunismo. Ele entrou em choque com Rosa Luxemburgo, que achava que as nações poderiam se voltar contra o Partido Comunista. Mas a opinião de Lenin venceu.

A Ucrânia e outras nações foram então reconhecidas como repúblicas separadas da Rússia e incorporadas à União Soviética. Porém, as promessas de liberdade para qualquer nação que desejasse sair do bloco nunca foram cumpridas.

Com o fim da União Soviética em 1991, a Ucrânia obteve sua independência e assim permaneceu até 2014, quando a Crimeia foi anexada pela Rússia e rebeldes apoiados por Moscou tomaram regiões de Luhansk e Donetsk.

A atual invasão da Ucrânia faria então parte de uma tentativa de Putin de corrigir um erro histórico cometido por Lenin. Porém, os argumentos históricos de Putin não levam em conta que grandes partes da Ucrânia - que antes da União Soviética pertenciam à Polônia, à Áustria e à Galícia - nunca fizeram parte da Rússia.

“A questão de Putin é unir os russos nessa condição de grande potência, unir brancos, os antigos czaristas, com os vermelhos”, disse Segrillo.

Laços de sangue

Segundo o historiador da USP, quando tenta justificar a guerra afirmando que querem proteger “russos étnicos”, Putin e seus aliados agem por uma lógica de difícil compreensão para povos ocidentais, como os brasileiros.

No Brasil, nossa visão de mundo é voltada para o conceito de “Estado-Nação”. Ou seja, um país não deve tentar interferir no que acontece no território do vizinho. Além disso, a nacionalidade de uma pessoa é definida pelo local em que ela nasce.

Mas na Europa há conceitos diferentes. Em muitos países, a nacionalidade é transmitida por critérios de hereditariedade e cultura. Assim, aos olhos de Putin, parte da nação russa não está só na Rússia. Há os chamados russos étnicos na Ucrânia, na Transnístria, na Bessarábia (hoje Moldávia), na Rutênia (que abrange partes da Eslováquia, Ucrânia e Polônia) e em diversas ex-repúblicas soviéticas.

“Putin se vê como o ‘defensor’ da nação russa como um todo, dentro ou fora da Rússia”, disse Segrillo.

Neonazismo

Uma das justificativas usadas pelo Kremlin para tentar motivar seus soldados e legitimar a invasão em 24 de fevereiro de 2022 foi “desnazificar” a Ucrânia.

Putin se baseou no fato de que movimentos nacionalistas ucranianos, especialmente o UPA, de Stephan Bandera, lutaram ao lado dos nazistas contra a União Soviética na Segunda Guerra. Os nacionalistas ucranianos depois acabaram traídos pelos nazistas.

Em um esforço de propaganda, o Kremlin tentou associar a imagem do UPA a integrantes do Batalhão Azov, uma unidade militar ucraniana que teria cerca de 20% de seus integrantes adeptos de preceitos neonazistas.

Mas Putin extrapolou esse raciocínio. Em seu conceito de história, os ucranianos são nazistas não porque concordam com as teorias de Adolf Hitler e seu nacional-socialismo, mas porque se recusaram a se subordinar à Rússia. Para reforçar essa ideia, a propaganda russa começou a produzir e divulgar imagens de ucranianos utilizando símbolos nazistas.

A maior parte desse esforço destina-se ao público interno da Rússia - principalmente seus militares. Como convencer e motivar jovens russos a matar seus vizinhos ucranianos? Uma estratégia eficaz foi classificá-los como neonazistas.

Esse tipo de solução parece estar nos manuais russos desde os tempos dos czares. Segundo Kuchkovska, na época da imperatriz Catarina II, os Cossacos de Zaporizhzhia - povo tradicional do sul da Ucrânia - foram vilanizados e classificados como ladrões e foras da lei - para justificar sua expulsão ou mesmo extermínio. Com o banimento dos últimos cossacos, Catarina II assegurou o fim da autonomia da região.

Kuchkovska, que nasceu em Zhytomyr, na região central da Ucrânia, afirmou acreditar que a manipulação histórica feita pelo Kremlin tem como alvo principal a população russa. “Não me sinto ofendida. A Ucrânia é independente e tem sua história. Eu tenho tanta confiança nisso que a manipulação de Putin soa como algo ridículo”, disse.

“Isso também não significa que eu concorde com o Ocidente. Eu gosto do meu povo, dos ucranianos”, disse.

Expansão da OTAN

Diferente dos temas acima, os acontecimentos recentes relacionados à expansão da OTAN no período pós-soviético estão ainda longe de serem consolidados em uma versão da história aceita mundialmente.

Desde o fim da Guerra Fria, 14 países aderiram à OTAN. A maioria deles havia vivido por décadas sob a dominação soviética e viram na aliança militar ocidental uma forma de se proteger contra uma eventual nova tentativa de expansão da Rússia.

A aliança sempre adotou uma política de “portas abertas” e não impediu nenhuma nação que atendesse a pré-requisitos técnicos de entrar no bloco - exceto a Rússia.

O entendimento de Putin é bem diferente. Para ele, é o Ocidente que tem pressionado cada vez mais nações a entrar na aliança. Ele culpa, por exemplo, os Estados Unidos e seus aliados por incitar e financiar o movimento pró-Ocidente na Ucrânia que derrubou um presidente ucraniano pró-Rússia e o substituiu por um mais amigável à Europa em 2014.

O episódio ficou conhecido como Revolução de Maidan - em referência à praça principal de Kyiv. A versão da ala pró-Maidan foi lutar pela liberdade de se alinhar ou não com quem o povo ucraniano quiser e assim decidir democraticamente.

Já para Putin, essa foi uma mudança de identidade forçada - cujos efeitos ele comparou em seu ensaio à detonação de uma bomba nuclear em solo russo.

Em paralelo, cada vez mais analistas ocidentais discutem se a postura da OTAN pode ter provocado a invasão russa na Ucrânia.

Outro ponto que deve ficar para os historiadores do futuro é se os Estados Unidos e seus aliados apoiaram a Ucrânia apenas para enfraquecer a Rússia, ou se forneceram armas, recursos e inteligência motivados pela defesa de um país soberano que foi atacado por seu vizinho mais forte - só por pensar diferente.

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