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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Contraofensiva pode decidir destino do governo da Ucrânia

Tropas russas em Kherson: retomada de cidade no sul da Ucrânia reforçaria Zelensky como líder em tempos de guerra, mas uma eventual derrota poderia acelerar tentativa russa de desacreditá-lo e derrubá-lo (Foto: EFE/EPA/SERGEI ILNITSKY)

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O governo ucraniano prepara uma contraofensiva de grande magnitude para tentar libertar a cidade de Kherson, no sul do país. O resultado dessa ação tem potencial para influir no destino político do presidente Volodymyr Zelensky e no apoio das potências do Ocidente às tropas ucranianas.

Diversas unidades militares ucranianas, que lutavam em Donbas, no leste, foram transferidas há cerca de duas semanas para a cidade de Mykolaiv - considerada um bastião de defesa no sul do país. As tropas estacionadas na cidade impediram que a Rússia completasse a conquista do litoral ucraniano no início da guerra. Lá, esses militares trocaram suas armas da era soviética por equipamentos americanos e se prepararam para o que pode ser a maior contraofensiva da Ucrânia até agora.

Rammstein, um atirador de elite que pediu para ser identificado apenas por seu apelido, lutava em Donbas usando um fuzil de assalto AK-12 (versão modernizada do clássico AK-47 soviético), equipado com uma mira telescópica improvisada. Essa arma é adequada para soldados regulares, mas é pouco precisa para um atirador de elite ou sniper como ele.

Em Mykolaiv, Rammstein recebeu uma arma adicional: um fuzil antimaterial americano Barrett M82, calibre .50, com silenciador. Desenhado para abater veículos ou aeronaves, o Barrett pode atingir alvos a 1,8 quilômetro de distância ou abater inimigos protegidos atrás de paredes ou em posições pouco fortificadas. Ou seja, o estado da arte para um atirador.

“Passamos por treinamento aqui em Mykolaiv. Mas a área está muito perigosa. O comando disse que há muitos espiões russos. Quando estamos de folga, não podemos andar fardados, porque eles seguem os militares para descobrir onde ficam suas bases”, disse Rammstein.

Após receber instruções específicas sobre o armamento, Rammstein se juntou a centenas de colegas, ucranianos e estrangeiros, que começaram a avançar em direção a Kherson.

O objetivo é libertar a cidade antes do dia 11 de setembro, dia tradicional de eleições na Federação Russa. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, disse em 19 de junho que o Kremlin se prepara para realizar plebiscitos nas regiões ocupadas de Kherson, Zaporizhzhia, Donetsk e Luhansk nessa mesma data.

A ideia seria usar a mesma cartilha que possibilitou a controversa anexação da Crimeia em 2014: realizar votações restritas aos locais em questão, questionando se os cidadãos querem fazer parte da Ucrânia ou da Rússia. A legislação ucraniana até prevê esse tipo de plebiscito, mas a votação tem que ser nacional.

Além disso, autoridades ocidentais dizem que há uma grande probabilidade de que a Rússia manipule os resultados dos plebiscitos, em uma tentativa de legitimar anexações formais de território.

Uma vez que o território ucraniano seja declarado oficialmente solo russo, o presidente Vladimir Putin pode afirmar, direta ou indiretamente, que a doutrina militar russa - que permite o uso de armamentos nucleares se solo russo for invadido - pode ser estendida aos territórios anexados da Ucrânia. A análise é do think tank americano Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês).

Por isso, os ucranianos têm pressa de atacar e seus aliados ocidentais tentam acelerar o envio de armas e munições. Porém, na prática, Kherson é a única área ocupada onde a Ucrânia tem chances reais de vencer os russos no curto prazo. Dificilmente os territórios em Zaporizhzhia, Donetsk e Luhansk serão libertados antes da anexação.

Kherson é o único território ocupado a oeste do rio Dnipro, que corta a Ucrânia praticamente ao meio. Entre os dias 19 e 20 de julho, os ucranianos usaram lançadores de foguetes de precisão americanos Himars para bombardear as duas únicas pontes sobre o Dnipro - que poderiam ser usadas pelos russos para levar reforços e armamentos para Kherson.

Uma delas foi quase inutilizada. A segunda, montada sobre o dique de uma usina hidrelétrica, continua operando, segundo informações recentes. De acordo com Serhiy Khlan, conselheiro administrativo de Kherson, o bombardeio de pontes serve para evitar que a Rússia mova equipamentos pesados para a cidade sem impedir a entrada de comida e suprimentos.

Também teriam sido atingidos ao menos dez alvos, entre depósitos de munição e centros de logística russos espalhados pela região. Em paralelo, tropas ucranianas tomaram diversos vilarejos, entre os dias 15 e 22 de julho, em preparação para a invasão.

No último dia 24, o presidente ucraniano anunciou que a contraofensiva estava em curso. Mas ainda não é possível saber qual a sua magnitude e se há armamentos e combatentes suficientes para cumprir a missão.

Segundo outro think tank, o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), a Ucrânia começou a guerra com aproximadamente 125 mil combatentes no exército e 100 mil membros da guarda nacional e forças de defesa territorial.

A Ucrânia não divulga seu número de baixas. Mas, com base em declarações do governo ucraniano de que cem militares são mortos por dia, órgãos de mídia internacionais estimaram que o número de combatentes mortos em ação varie entre 35 mil e 45 mil até o momento.

O ministro da defesa Oleksii Reznikov chegou a dizer que o país seria capaz de juntar 1 milhão de combatentes (700 mil combatentes do exército e 300 mil paramilitares). Mas ainda não surgiram evidências de que isso seja factível, nem se os novos recrutas teriam treinamento suficiente para fazer a diferença no campo de batalha.

Além disso, uma ação militar exitosa depende de muitos outros fatores, como armas avançadas, logística e organização. Não se sabe exatamente a quantidade de armas pesadas enviadas pelo Ocidente que estão em Mykolaiv. Mas, em tese, a Ucrânia leva vantagem na logística pela posição geográfica da cidade.

O futuro político de Zelensky pode ser influenciado pelo resultado dessa operação. Se houver sucesso em libertar Kherson, o presidente mandará um recado aos Estados Unidos e seus aliados europeus de que as transferências de armas, treinamento e inteligência fornecidos estão fazendo efeito. Ele também reforçará sua imagem internamente, mostrando que é o homem certo para conduzir a nação em tempos de guerra.

No melhor cenário para a Ucrânia, as tropas russas não conseguirão enviar reforços suficientes a Kherson por causa da barreira do rio Dnipro e dos disparos de longo alcance dos Himars (que podem atingir alvos a até 80 km de distância). Em paralelo, um levante liderado por partisans (guerrilheiros) desestabilizará a defesa da cidade e os russos terão que fugir abandonando armas e equipamentos pesados com a aproximação da força de ataque principal ucraniana.

Por sua vez, Moscou vem transferindo tropas da frente oriental para o sul do país, a fim de sustentar posições em Kherson. Essas tropas tentarão cruzar o Dnipro pela ponte restante ou utilizando balsas e pontes temporárias. A aviação russa pode ser utilizada para bombardear blindados e tropas ucranianos, enquanto drones (que o Kremlin tenta comprar do Irã) sairão à caça dos lançadores de foguetes Himars e outras peças de artilharia fornecidas pelo Ocidente.

Sem falar que o Kremlin ainda possui grande estoque de mísseis de cruzeiro que podem atingir qualquer parte da Ucrânia.

Assim, se a contraofensiva ucraniana for incapaz de libertar Kherson, a capacidade de liderança de Zelensky e de seus generais pode ser colocada em dúvida. O chanceler russo Sergey Lavrov afirmou neste mês que um dos objetivos da Rússia é derrubar o presidente ucraniano.

O Kremlin vinha travando uma guerra de atrito (com muita violência e pouco avanço) que, entre outros objetivos, visava diminuir a moral dos ucranianos e desacreditar Zelensky. Uma vitória em Kherson poderia acelerar esse processo.

A Rússia parece estar apostando nessa batalha da mesma forma que a Ucrânia. Na frente oriental, as tropas fizeram uma pausa para descanso entre 7 e 16 de julho. Quando o avanço foi retomado, seguiu de forma mais lenta, apenas em duas direções: Bakhmut e Siviersky. Isso pode indicar uma reorganização das tropas russas.

Enquanto os dois exércitos se preparam para o enfrentamento em Kherson, a cidade permanece praticamente isolada. Antes da invasão russa, a população estimada era de 290 mil pessoas. No último levantamento, feito em maio, 180 mil ainda estavam na região. Não há acesso a remédios nem bens essenciais.

O governo ucraniano vem emitindo pedidos para a população deixar a cidade. Mas a rede de internet e meios de comunicação já teriam sido substituídos por redes russas.

As pessoas também não têm acesso a bancos e caixas eletrônicos para sacar dinheiro. Segundo o jornal Kyiv Independent, pró-Ucrânia, muitos estão conseguindo recursos vendendo seus bens em mercados de pulgas. A Rússia impôs uso do rublo, sua moeda nacional, mas as pessoas estariam se recusando a utilizá-la.

O periódico afirmou ainda que a polícia militar russa vem agindo com violência para tentar identificar membros da resistência ucraniana. Por sua vez, os partisans têm conduzido tentativas de assassinato contra autoridades russas.

Em resumo, a Ucrânia tem uma boa oportunidade para obter uma vitória militar e midiática localizada, devido a fatores como a posição geográfica de Kherson, a concentração de tropas em Mykolaiv e os lançadores de foguetes Himars. Mas a Rússia continua tendo superioridade de armamentos e de combatentes na guerra como um todo. Por isso, dificilmente Kherson será a última batalha desta guerra.

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