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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Escalada

De volta à Ucrânia, sob o terror nuclear

Morador de Kyiv observa marca de cratera, já preenchida com terra, em passagem de pedestres debaixo da ponte de vidro, uma das atrações turísticas da capital ucraniana (Foto: Luis Kawaguti)

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A nova onda de bombardeios feitos pela Rússia na Ucrânia nesta semana me levou de volta à Europa, para continuar a cobertura da guerra no terreno. Após cinco meses escrevendo Jogos de Guerra na segurança da cidade de São Paulo, cruzar a fronteira da Polônia para a Ucrânia na sexta-feira (14) foi uma experiência difícil, que trouxe muito temor.

Muita coisa aconteceu entre setembro e outubro no conflito: os ucranianos libertaram uma vasta área invadida pelos russos no nordeste e no sul do país e tomaram a iniciativa na guerra. O presidente Vladimir Putin decretou “mobilização parcial” e recrutou mais de 220 mil soldados, que já começaram a ser mandados aos poucos para o campo de batalha.

Há uma semana, a ponte que liga a península da Crimeia (sob o controle de Moscou desde 2014) ao território russo foi dinamitada e parcialmente destruída. O Kremlin culpou forças ucranianas e, em retaliação, realizou bombardeios em toda a Ucrânia durante quatro dias seguidos - que deixaram 30 mortos.

O conflito claramente passa por uma escalada de intensidade.

Mas o fator mais inquietante se materializou nas declarações de Putin e de seus assessores: a possibilidade da Rússia usar armas nucleares táticas contra os ucranianos. A OTAN (aliança militar ocidental) respondeu afirmando que, se isso acontecer, lançará um ataque convencional de grandes proporções para varrer as forças russas da Ucrânia.

Foi a primeira vez desde o fim da Guerra Fria que uma potência ameaçou, de fato, lançar mão de armamento nuclear. Os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã e não usaram armas nucleares. Os russos foram derrotados em sua campanha militar no Afeganistão e não quebraram o chamado “tabu nuclear".

Como a maior parte dos brasileiros, fiquei chocado com a possibilidade de uma guerra nuclear. Mas a distância de milhares de quilômetros do campo de batalha dava a essa ameaça uma certa impressão de retórica belicista, sem grande possibilidade de se concretizar.

Mas essa perspectiva muda completamente quando se está prestes a cruzar a fronteira da Ucrânia.

A possibilidade de ataques aéreos em qualquer lugar do país sempre existiu nesta guerra e, em muitos momentos, a Rússia não fez distinção entre alvos civis e militares. Posso afirmar isso com certeza, pois em abril estava em um carro de imprensa identificado em inglês e em russo que foi alvo de estilhaços de morteiro na região de Zaporizhzhia. Felizmente, ninguém se feriu na ocasião.

Mas o fato é que enfrentar a possibilidade teórica da aniquilação massiva por meio de uma bomba nuclear tática me provocou uma reação física, a náusea, nos dias que antecederam minha viagem para a Ucrânia. E essa sensação ainda não passou.

Cruzar a fronteira terrestre sempre dá medo. Na primeira vez, em 1º de março deste ano (a guerra havia começado cinco dias antes), entrei na Ucrânia em um trem de refugiados. Ele ia de Lviv até a Polônia levando centenas de ucranianos e depois retornava quase vazio - levando apenas combatentes voluntários e jornalistas.

Na última sexta-feira, peguei um ônibus em Lublin, na Polônia, com destino à capital ucraniana, Kyiv. A viagem começou na madrugada. No ônibus, a maioria dos passageiros eram mulheres e crianças que retornavam para seu país. Desde o início da guerra, os homens foram proibidos de sair. Eles têm que ficar para defender a pátria.

Ou seja, mesmo com a nova onda de ataques, essas pessoas voltavam para casa, para se reunir com familiares. A coragem delas me motivou a entrar no ônibus também. Afinal, é disso que se trata a cobertura jornalística em uma guerra: mostrar o que acontece à população civil, retratar seus sofrimentos e esperanças.

A viagem começou com o ônibus em silêncio quase absoluto - quebrado apenas por música americana que o motorista ouvia baixinho. Uma jovem sentada perto disse que saiu da Ucrânia há alguns meses, mas agora seus parentes disseram que é seguro voltar para Kyiv. Ela viajava só. Como eu, tentava obter informações sobre a situação de segurança em Kyiv por um aplicativo de mensagens no telefone celular. Algumas fileiras de cadeiras para trás, um grupo de senhoras consumia um lanche preparado para aguentar as 14 horas de viagem.

A alguns quilômetros da fronteira, contei mais de 550 caminhões à espera para entrar na Ucrânia. Eles transportavam carros, máquinas agrícolas e possivelmente uma série de bens que a combalida economia ucraniana não é mais capaz de produzir.

O presidente Volodymyr Zelensky disse que, se a guerra acabasse agora, seriam necessários US$ 57 bilhões para reconstruir a Ucrânia. O Fundo Monetário Internacional estima que o país vai precisar receber entre US$ 3 bilhões e US$ 4 bilhões de ajuda mensal em 2023 para continuar funcionando.

O processo de checagem de passaportes e malas, tanto do lado polonês como do lado ucraniano da fronteira, levou cerca de quatro horas, mas transcorreu normalmente.

No meio da madrugada, as barricadas ucranianas começaram a aparecer na rodovia na medida em que o ônibus se deslocava. Todas elas cobertas por redes de camuflagem já batidas pelo tempo - que agora se assemelham a farrapos. Os soldados se aqueciam em fogueiras acesas dentro de latões de diesel. No termômetro do ônibus, 7ºC do lado de fora.

Na entrada de Zhytomyr, ao sul de Kyiv, as tropas ucranianas posicionaram canhões antitanque nas barricadas.

Ao amanhecer, os campos ucranianos ficaram cobertos por uma forte névoa. Para um jornalista interessado em assuntos de guerra, é impossível não pensar no seu maior teórico, o prussiano Carl Von Clausewitz. Em uma interpretação livre, ele falava que numa guerra mesmo as coisas mais simples são difíceis de se realizar. E essas dificuldades vão se acumulando e gerando cada vez mais atrito.

Assim, até as coisas mais simples, como se deslocar pela cidade, comprar mantimentos e trabalhar, têm que ser bem planejadas. Em caso de ataque aéreo, é preciso estar perto de um abrigo ou bunker. Nos últimos meses, muitas pessoas às vezes ignoravam as sirenes de ataque, mas isso mudou com os bombardeios desta semana.

Já a névoa - formada pela pólvora no campo de batalha - era a referência de Clausewitz à guerra ser o terreno da incerteza.

Apesar da neblina ter se dissipado com a chegada do sol da sexta-feira, a incerteza sobre o futuro do país permanece nos corações ucranianos. Não é possível dizer se haverá ataque nuclear, se as tropas russas vão avançar sobre mais terreno ucraniano ou se a paz ainda está ao alcance.

Já em Kyiv, notei que muitas barricadas e postos de controle haviam sido retirados das ruas em comparação à última vez que estive aqui, em maio. Cruzamentos antes interrompidos por redes de trincheiras agora dão lugar a um grande fluxo de veículos, como em qualquer grande cidade.

Na capital, os cidadãos não parecem mais temer uma invasão com blindados e tropas. A ameaça vem do céu, na forma de mísseis de cruzeiro e drones suicidas. A OTAN promete agora novas e modernas defesas antiaéreas, como o Íris-T, um sistema de baterias antiaéreas alemão de longo alcance, que promete proteger as cidades dos mísseis russos.

Mas por si só tais sistemas não resolvem o problema - pois devem acabar saturados pela quantidade de foguetes e drones disparados pela Rússia ao mesmo tempo. A OTAN diz então que enviará “jammers" ao campo de batalha, aparelhos que inutilizam os drones com ondas eletromagnéticas.

Ao chegar a Kyiv, fui à ponte de vidro, uma das principais atrações turísticas da capital. Ela conecta o parque de Khreshchaty com a colina de São Volodymyr. Ela foi alvo de um dos 75 mísseis disparados pelo Kremlin contra a Ucrânia na segunda-feira (10) - quando os ataques foram mais intensos.

Um míssil errou a estrutura da ponte e destruiu uma passagem de pedestres abaixo dela. Quando cheguei, vi que a cratera do míssil já estava cheia de terra e uma mureta havia sido restaurada. Mas marcas de fuligem ainda estavam presentes na ponte.

A estudante Anita Nikivorolova, que foi com um grupo de amigos ver como ficou a ponte, explicou o sentimento dos ucranianos. “Essa ponte foi construída com o aço de Azovstal”, disse, em referência à siderúrgica que por três meses foi o bastião da resistência ucraniana em Mariupol.

“É importante ela estar de pé. Eu acho isso muito simbólico, porque mostra que o povo ucraniano é resistente como o aço desta ponte”, disse.

Comecei a entender então que a coragem que esse povo demonstrou no começo da guerra não se arrefeceu, nem mesmo após tantas ameaças nucleares e chuvas de mísseis.

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