A publicitária Maryna (ela prefere que seu sobrenome não seja divulgado, por questões de segurança) ouviu a explosão do primeiro míssil russo sobre a capital ucraniana, Kiev, às 5h30 da manhã da última quarta-feira. Aquela foi a última noite em que dormiu em casa, pois agora passa a maior parte de seu tempo em um abrigo antiaéreo ou ajudando a comunidade a se organizar para tentar resistir à invasão russa.
Por WhatsApp, ela contou a este colunista como foi o primeiro impacto do conflito: “Naquela hora, a informação sobre diversas explosões já estava na internet, mas ninguém ainda estava entendendo o que aquilo significava”.
O significado agora está claro para todo o planeta: a Europa testemunha a maior guerra aberta entre Estados (Rússia e Ucrânia) desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
“Os ucranianos ficaram muito unidos com essa situação: nós informamos uns aos outros sobre notícias de fontes oficiais, damos apoio a quem precisa, levantamos dinheiro, doamos sangue e participamos da defesa territorial”, disse ela.
Os primeiros dias da guerra foram marcados por uma corrida a supermercados, postos de gasolina e caixas eletrônicos. O trânsito ficou caótico, pois milhares de pessoas tentaram deixar Kiev de carro.
Ao menos 100 mil pessoas já deixaram o país, segundo a ONU. Enquanto isso, dezenas de milhares se dirigem às fronteiras.
Mas um grande número de cidadãos permanece em Kiev, e eles estão dispostos a defender sua capital. Segundo Maryna, as pessoas estão se organizando para lutar - seja com um fuzil na mão, fazendo trabalhos logísticos e de apoio à população ou em atividades de propaganda.
Nasce, ainda sem um nome específico, a resistência ucraniana.
Guerra convencional x guerra irregular
Até agora, o conflito na Ucrânia é uma “guerra convencional”, onde forças armadas profissionais se enfrentam usando blindados, mísseis e aviões.
Em tese, o objetivo da Ucrânia é conter a invasão russa e, no futuro, lançar um contra-ataque convencional para empurrar os russos para fora de suas fronteiras.
Mas muitos analistas militares acham que isso não vai acontecer devido ao poderio bélico de Moscou. O conflito pode se transformar então em uma guerrilha de resistência com o objetivo de desgastar os russos a longo prazo.
“O que eu posso dizer é que os ucranianos acreditam na força de seu exército!”, afirmou Maryna.
Segundo ela, as forças armadas ucranianas ganharam muito respeito e prestígio na sociedade desde 2014, quando o país perdeu parte das províncias de Donetsk e Lugansk, no leste, para rebeldes financiados e controlados por Moscou.
“Em primeiro lugar, vem a luta pela liberdade, mas ela é feita pelas tropas profissionais”, apontou.
Em paralelo às ações do Exército, o presidente Volodymyr Zelensky vem incentivando os civis de Kiev a ajudar na defesa da capital.
Ele disse que quem quisesse uma arma iria receber. Milhares de fuzis e metralhadoras foram entregues. Os órgãos de imprensa internacionais já exibem imagens de milícias civis que se organizaram para apoiar os militares no terreno.
Antes da invasão, centenas de civis, homens e mulheres, vinham passando por treinamento militar.
Na fronteira entre a Ucrânia e a Polônia, membros das milícias de defesa da Ucrânia estão pedindo aos poloneses botas, capacetes e coletes à prova de balas para organizar o que chamam de unidades de “defesa territorial”, segundo apurou este colunista.
Os ucranianos têm forte ligação com os poloneses e vêm recebendo esse tipo de doação de maneira informal ao longo da fronteira.
Tanto nas cidades de fronteira quanto na capital polonesa, Varsóvia, as pessoas estão chocadas com a violência das ações russas e tristes pelos amigos ucranianos. Ao falar dos vizinhos, os poloneses lembram de sua própria história. Durante o Levante de 1944, o Exército da Pátria (Armia Krajowa), formado em grande parte por civis, lançou uma revolta contra os nazistas durante a ocupação na Segunda Guerra Mundial.
Eles esperavam receber ajuda do Exército Vermelho, que se aproximava da cidade. Mas os soviéticos preferiram estacionar fora de Varsóvia e assistir aos rebeldes serem massacrados pelas forças nazistas. Para os soviéticos, seria melhor tomar uma cidade sem resistência local, que poderia se voltar contra eles no futuro.
Uma revolta planejada para durar semanas se estendeu por mais de 60 dias, até o massacre da maioria dos partisans e a rendição dos que haviam sobrado.
Assim como a Polônia na Segunda Guerra, a Ucrânia parece estar sendo abandonada à própria sorte. Mas essa é uma história antiga e a Ucrânia já tem seus próprios heróis: eles são 13 guardas de fronteira que, sozinhos, tentaram defender nesta semana a minúscula Ilha Zmiinyi, no Mar Negro.
Ainda não está claro se a história realmente aconteceu ou se é propaganda de guerra. Segundo a BBC, gravações de áudio mostram uma suposta conversa por rádio envolvendo uma embarcação russa e a equipe de guardas. Um tripulante russo teria dito: “Eu proponho que vocês abaixem suas armas e se rendam para evitar derramamento de sangue e vítimas desnecessárias. De outra maneira, vocês serão bombardeados”.
Ouve-se então uma pequena discussão entre os guardas no rádio, que teriam dito entre si: “Ok, então é isso”, e respondido: “Navio da Rússia, vá para o inferno!”.
Os 13 defensores da ilha teriam então sido abatidos por salvas de artilharia naval. Os áudios foram difundidos por autoridades ucranianas. Moscou, por sua vez, nega e diz que todos foram feitos prisioneiros.
O presidente Zelensky condecorou os 13 com o título póstumo de “Herói da Ucrânia”.
Na Rússia, o presidente Vladimir Putin tem feito comunicados destinados aos militares ucranianos. Ele instiga as tropas ucranianas a atacarem seu próprio governo, que Putin classifica como “uma gangue de drogados e neonazistas”.
Em uma gravação em vídeo difundida em redes sociais na manhã de sábado (26), o presidente ucraniano disse: “Nós não vamos baixar nossas armas. Nós vamos defender nosso Estado, porque a nossa arma é a nossa verdade. E a nossa verdade é que essa é a nossa terra, nosso país, nossas crianças e nós vamos defender tudo isso”.
Zelensky vem personificando e incentivando um senso de patriotismo atávico que caracteriza os povos eslavos, cujas nações foram forjadas no calor da guerra. Essa característica já resultou em atos de bravura e heroísmo extremo, como no Levante de 44 da Polônia. Mas também costuma resultar em desfechos sangrentos, com a aniquilação dos heróis.
O presidente ucraniano parece já ter compreendido que a ajuda de fora não virá ou será limitada a sanções econômicas e políticas, além de doação de armamentos de defesa e compartilhamento de informações de inteligência. Os Estados Unidos e seus aliados ocidentais querem evitar que o conflito se alastre pela Europa ou se transforme em uma nova guerra mundial e possivelmente nuclear.
Por isso, está totalmente nas mãos de Zelensky e de sua cúpula a decisão de lutar até o fim pela pátria ou capitular, evitando que o número de mortes chegue a patamares que só podem ser endereçados por meio de estimativas.
Ele pode aceitar o convite de Putin para negociar em Minsk, capital de Belarus. Mas o desfecho disso deve ser sua deposição e um cenário da Ucrânia desmilitarizada e possivelmente submissa a Moscou.
Zelensky também pode optar por uma guerra de defesa, com características de guerrilha, que se estenda por anos para desgastar a Rússia e fazê-la desistir da ocupação em algum momento - como ocorreu com os Estados Unidos no Afeganistão no ano passado.
Ainda não é possível saber quais serão as ações de Zelensky. O que não se esperava era que um presidente europeu tivesse que tomar esse tipo de decisão em pleno século XXI.
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