A visita do presidente Jair Bolsonaro à Rússia teve como objetivo no campo militar a prospecção e eventual compra ou desenvolvimento conjunto de tecnologias nas áreas espacial, de guerra cibernética e tecnologia nuclear.
O Brasil está interessado, por exemplo, em tecnologias relacionadas a mísseis de longo alcance e hipersônicos, defesa antiaérea, navios de patrulha e lanchas rápidas de assalto.
“Acho que temos uma janela de oportunidades muito boa para romper com velhos paradigmas em antigas situações de dependência”, afirmou à coluna Marcos Degaut, secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.
Um dos fatos mais importantes na visita à Rússia foi a assinatura de um acordo para proteção mútua de informações classificadas. Ele foi firmado pelo general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e o general Nikolai Patrushev, diretor do Serviço Nacional de Segurança (FSB, o órgão que sucedeu o órgão de inteligência soviético, a KGB).
Live Jogos de Guerra: O Brasil e a Rússia estão mais próximos?
“A importância desse entendimento bilateral é que teremos uma cooperação facilitada em tecnologia de ponta e áreas sensíveis”, afirmou na ocasião o chanceler brasileiro Carlos Franco França.
Em outras palavras, o Brasil quer obter na Rússia tecnologias estratégicas que não têm sido compartilhadas pelos atuais parceiros do Ocidente.
“As nossas conversas com o governo russo podem vir a resultar em um salto qualitativo muito grande para a base industrial de defesa brasileira do ponto de vista do incremento da tecnologia para aumentar o nosso grau de autonomia tecnológica e estratégica em diversos setores”, afirmou Degaut.
Na entrevista exclusiva à Jogos de Guerra, o secretário citou quais são as tecnologias russas em que o Brasil está interessado. Com base na lista, fizemos um panorama completo sobre foguetes lançadores de satélites e mísseis hipersônicos, sistemas de guiagem de mísseis, defesa antiaérea e navios de patrulha oceânica.
Míssil hipersônico
Uma das tecnologias mais disruptivas em que o Brasil está interessado é da área espacial. A ideia é ter acesso ou desenvolver foguetes lançadores de satélites e de mísseis hipersônicos.
O míssil e o planador hipersônico são hoje alguns dos armamentos mais valorizados da nova corrida armamentista. São mísseis capazes de voar a mais de 6 mil km/h dentro da atmosfera (cinco vezes a velocidade do som) e fazer manobras para evitar os sistemas de defesa antiaérea existentes. Eles podem carregar ogivas nucleares.
A Rússia foi pioneira nesse setor. Possui o míssil hipersônico Kinzhal desde 2018, o planador hipersônico Avangard desde 2019 e testou no ano passado o míssil hipersônico naval Tsirkon - que pode ser usado nos exercícios de mísseis liderados por Putin neste fim de semana.
A China surpreendeu o mundo ao testar a tecnologia no ano passado e os Estados Unidos, embora já tenha tido sucesso em alguns testes, só devem incluir esse tipo de arma em seu arsenal no fim deste ano.
O Brasil testou com sucesso, em dezembro do ano passado, o motor scramjet de seu protótipo de planador hipersônico 14-X. Ele foi levado ao espaço por um foguete brasileiro. Mas o projeto nacional tem ainda ao menos mais três fases de desenvolvimento. Será preciso criar materiais que resistam a um voo que gera aquecimento de mais de 2 mil graus Celsius em alguns segundos - entre outras dificuldades técnicas.
As conversações entre Brasil e Rússia ainda não avançaram a ponto de ser possível saber se a participação russa vai se restringir ao foguete que leva o planador até o espaço. Essa tecnologia já foi abordada na coluna.
A ideia geral é firmar parcerias para desenvolver o Programa Estratégico de Sistemas Espaciais da Força Aérea.
Mísseis guiados
Outra das tecnologias a que o Brasil quer ter acesso é o sistema de guiagem para mísseis. Hoje, os maiores avanços do Brasil na área estão relacionados à Avibras. A empresa possui um sistema chamado Astros II que é exportado para países como Catar, Arábia Saudita e membros da Otan.
Porém, ele usa uma tecnologia de saturação, ou seja, dispara vários foguetes em um curto período de tempo para atingir toda uma área. Ou seja, não são mísseis de precisão “cirúrgica”.
Em outra frente, a empresa desenvolve para o Exército o mais potente míssil de cruzeiro do Brasil, o AV-TM 300, que ainda não está pronto. Ele deve ter capacidade para atingir alvos a 300 quilômetros de distância.
O acesso à tecnologia de guiagem de mísseis, em teoria, pode diminuir a dependência do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que hoje importam esse tipo de armamento.
A Rússia implementa desde a metade da década de 2010 um programa de modernização de seus mísseis guiados disparados de aviões para abater outras aeronaves, segundo estudo do think tank Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS).
Durante a guerra da Síria, a força aérea russa usou mísseis de cruzeiro guiados Raduga que foram modernizados durante o programa para abater alvos a até 2,5 mil km de distância. Eles eram lançados de aviões bombardeiros.
A marinha russa também usou mísseis guiados de alcance semelhante (3M14 Kalibr) para atingir unidades militares terrestres na Síria a partir dos mares Cáspio e Mediterrâneo, segundo o IISS.
Defesa antiaérea
O Brasil sonda a Rússia para ter acesso a sistemas de defesa antiaérea de curto, médio e longo alcance. Ou seja, sistemas de mísseis capazes de abater aeronaves.
Pouco se sabe sobre quais equipamentos o Brasil quer negociar. Durante o governo do PT, Brasil e Rússia começaram a dialogar sobre o sistema de mísseis de médio alcance Pantsir. Mas a compra não avançou.
A Venezuela possui mísseis antiaéreos russos S-300 - que chegou a posicionar na fronteira brasileira durante a crise de refugiados em 2018. O Brasil não tem nada parecido e, em tese, se um conflito tivesse se concretizado, não poderia aproximar nenhuma aeronave dentro de seu próprio território a menos de 300 quilômetros da Venezuela, por causa do alcance da arma de origem russa.
Na atual crise da Ucrânia, a Rússia disparou durante exercícios em Belarus o S-400, um míssil antiaéreo capaz de atingir alvos a mais de 400 quilômetros de distância.
Navios de defesa costeira
A marinha russa não tem a mesma capacidade de atuar “longe de casa” como tinha no período soviético. Mas um projeto de modernização de navios voltados para a defesa do litoral começou em 2008.
A Rússia só tem um porta-aviões hoje, o Almirante Kuznetsov. Segundo o IISS, a estratégia do país, em linhas gerais, é investir em submarinos (que podem atuar em qualquer parte dos oceanos e dissuadir ataques) e em uma esquadra que possa defender seu litoral.
Como a Marinha Brasileira também é voltada praticamente para a defesa do litoral, a ideia é negociar com os russos parcerias na construção de navios de patrulha oceânicos de grande porte e lanchas rápidas de assalto.
Uma outra área de pesquisa, essa ainda um pouco mais distante, é que o Brasil e a Rússia podem ser parceiros é o desenvolvimento de embarcações civis movidas a motores nucleares.
Analistas acreditam que esse pode ser o futuro da navegação mundial, devido ao processo de transição de fontes de combustível fóssil para energias limpas. Não há um consenso entre especialistas se a energia nuclear pode ser considerada limpa ou não, mas poucas outras fontes se revelaram promissoras para abastecer a navegação mundial. A Rússia já possui navios quebra-gelo movidos a motores nucleares de baixa capacidade.
Monitoramento de fronteiras
O governo brasileiro também sondou Moscou sobre possíveis parcerias para desenvolver o Sistema de Monitoramento de Fronteiras (SIsfron) e o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (Sisgaaz). Eles são sistemas de fiscalização e segurança eletrônicos compostos por radares e satélites. Foram concebidos para vigiar as fronteiras terrestre e marítima do Brasil, mas operam hoje apenas em regiões limitadas do país.
Contudo, este colunista apurou com fontes envolvidas com o Sisfron que integrar tecnologia russa com o sistema já existente baseado em radares e sistemas ocidentais seria uma tarefa extremamente complexa. Autoridades do governo apontam que a falta de investimentos no Sisfron já está tornando o sistema obsoleto.
O caminho a seguir
Como essas compras e parcerias podem se concretizar? Não está claro ainda, mas temos algumas pistas.
O poder militar da Rússia decaiu muito nas décadas de 1980 e 1990, com a dissolução da União Soviética. Praticamente só o arsenal de mísseis e armas nucleares receberam verbas.
Em 2008, quando os russos invadiram a Geórgia, diversas falhas de mobilização e desempenho de pessoal e equipamentos ficaram evidentes. Moscou realizou então entre 2011 e 2020 seu Programa Estatal de Armamento.
Em paralelo, a Rússia abandonou seu antigo sistema militar baseado na conscrição massiva de sua população para dar lugar a mais militares profissionais. Eles ganharam experiência de batalha nas campanhas da Síria, na invasão da Crimeia e na campanha de forças irregulares que levou à invasão de províncias do leste da Ucrânia em 2014.
A Rússia nunca esteve tão forte militarmente desde a queda da União Soviética. Mas nem tudo saiu como Moscou planejou. Em relação às forças terrestres, uma grande parte do esforço de rearmamento se baseou em equipamento soviético que foi modernizado, mas não na quantidade que a Rússia planejava. Também não houve muitos avanços em direção a tecnologias disruptivas, segundo o IISS.
Houve exceções, é claro, como a adoção do S-500, a unidade de artilharia capaz de lançar mísseis a mais de 500 quilômetros de distância.
Na área naval, sanções econômicas e baixo desempenho dos estaleiros fizeram com que a indústria militar ficasse aquém do planejado. Toda a capacidade russa de operar nas “águas azuis” (longe do litoral) se baseia em navios soviéticos. Não há também navios suficientes para realizar desembarques anfíbios em larga escala.
Já a força aérea russa, os programas de mísseis hipersônicos, drones e guerra espacial e cibernética passaram por grande desenvolvimento.
Mas Moscou ainda precisará fazer muitos investimentos tanto para finalizar o processo de modernização de forças existentes quanto para criar armas novas que possam desequilibrar o cenário militar.
Uma das formas de obter recursos para isso é investir na exportação de armamentos e tecnologia. A Rússia é o segundo maior exportador de armas do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos.
Washington, por sua vez, restringe exportações de alguns tipos de armas e tenta impor sanções a países que compram equipamentos russos.
Moscou também terá que compensar os gastos com o deslocamento de mais de 160 mil tropas e equipamentos para a fronteira da Ucrânia - um tipo de operação que não é barata.
Nesse contexto, interessa à Rússia ter um cliente como o Brasil e, eventualmente, um parceiro no desenvolvimento de novas armas.
A questão é como o Brasil faria para pagar por esse tipo de tecnologia bélica. Hoje, as Forças Armadas desenvolvem armas em parcerias com empresas privadas brasileiras e estrangeiras ou compram o que precisam no exterior.
Há incentivos fiscais para o setor de defesa nacional como um todo, mas o Planalto não apoia empresas específicas, garantindo seu financiamento e sobrevivência. Ou seja, não há “campeãs nacionais”. Embora muitos analistas advoguem por esse modelo (que ocorre nos EUA, por exemplo), ele estaria em descompasso com a política liberal do atual governo.
Um caminho poderia ser fomentar parcerias entre empresas brasileiras e russas para construção de equipamentos. Ou comprar das empresas russas, mas exigir contrapartidas, como transferência de tecnologia ou produção no país. Esses são modelos que o Brasil já pratica.
As exportações de equipamentos bélicos, que bateram recorde histórico no ano passado (R$ 9,4 bilhões), podem eventualmente ajudar empresas nacionais a trabalhar em conjunto com as russas.
Há também a opção de investir em estatais de defesa, o que é menos provável, segundo analistas. Mas em quase todos os casos, para adquirir armamento avançado e competitivo, o Brasil provavelmente terá que investir recursos públicos. O governo parece apontar para uma solução que ajude a desenvolver a base industrial de defesa brasileira.
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